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Magda Soares e o processo de alfabetizar letrando

Carlota Boto (*) | 04/02/2023 09:00

No último dia 1º de janeiro, quando o Brasil se emocionava com um tempo auspicioso prometido pelo novo governo então empossado, a comunidade educacional e acadêmica perdia uma de suas mais singulares protagonistas: morria, naquele dia, Magda Soares.

Magda Becker Soares nasceu em 1932 em Belo Horizonte, onde estudou em um colégio de matriz protestante. Cursou Letras na UFMG. Foi lá que, em 1959, ela ingressou como docente nos cursos de Letras e Pedagogia.

Magda Soares teve também uma importante experiência junto ao Colégio de Aplicação da mesma Universidade. Na UFMG, ela fez toda sua carreira acadêmica, tornando-se professora titular na universidade. No âmbito da reforma universitária ocorrida na UFMG, ela participou ativamente da criação da Faculdade de Educação, da qual também foi diretora e posteriormente foi homenageada como Professora Emérita.

Nos anos 1990, fundou o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) e criou junto à Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) o Grupo de Trabalho de Alfabetização. No início dos anos 2000, Magda Soares teve um importante papel como consultora da rede municipal de educação da cidade de Lagoa Santa, em Minas Gerais, onde coordenou projetos de alfabetização das escolas públicas.

Tendo inaugurado os estudos acerca do letramento das crianças no Brasil, Magda Soares sempre soube articular sua perspectiva pedagógica e seu conhecimento linguístico com sua sensibilidade social. O Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa, datado de 2012, foi elaborado sob a referência dos trabalhos de sua autoria. A educadora pensava o desenvolvimento de uma sociedade letrada como forma de criar também uma sociedade mais justa, com melhor distribuição de riqueza, onde todas as pessoas pudessem acessar equitativamente os bens culturais. O caráter inovador de seus estudos sobre a alfabetização infantil foi central na formação de professores em nosso país. Pode-se dizer que, pela leitura dos textos de Magda Soares, nós nos formamos como alfabetizadores.

No conjunto de sua obra, vale destacar a publicação em 1986 da obra Linguagem e Escola, que hoje está na 18ª edição, pela Editora Contexto. Ali, Magda Soares problematizava o conflito entre a democratização do acesso à escola, ocorrida no Brasil ao longo da segunda metade do século 20, e o fracasso escolar que se lhe seguiu. Para a autora, com a escola ampliada para acolher camadas economicamente desfavorecidas, as quais anteriormente não eram recebidas pela instituição, passou a haver uma tensão entre a linguagem valorizada pela escola – que é a linguagem das camadas privilegiadas – e a maneira como se expressavam linguisticamente as camadas populares. Magda Soares demonstra que houve basicamente três vertentes explicativas para essa diversidade de padrões linguísticos.

A primeira, dentre essas vertentes, é o que a autora caracteriza por ideologia do dom ou do talento. Sob tal perspectiva, haveria uma igualdade de oportunidades no acesso à escolarização e, portanto, se sobressairiam aqueles que evidenciassem ser os melhores. O pressuposto é, portanto, o de que a escola seleciona basicamente os mais capazes de falar a língua que ela própria – escola – veicula. As desigualdades, sob tal vertente, seriam de dom, de aptidão ou de inteligência; e seria a partir disso que haveria desigualdade no aproveitamento escolar dos alunos.

A segunda interpretação desse fenômeno da diversidade dos padrões linguísticos parte do que a autora qualifica por ideologia da deficiência cultural. Tal ponto de vista compreende que haveria um código elaborado de compreensão da linguagem, que poderia se tornar a métrica universal de medida; havendo, como contraponto, o universo de códigos restritos a partir das categorias de falta, de carência e de privação. Se, na primeira vertente, a responsabilidade do fracasso se encontraria basicamente nas capacidades do aluno, aqui a família e o meio é que seriam os culpados pelo não aprendizado, por causa de uma suposta pobreza do seu contexto linguístico.

A terceira e última vertente interpretativa corresponderia ao que Magda Soares chama de ideologia das diferenças culturais. A premissa norteadora dessa corrente seria a de que todas as culturas são igualmente elaboradas, complexas, estruturadas e coerentes. Portanto, a marginalização cultural só ocorre porque são estabelecidos padrões idealizados de cultura. Contra isso, haveria de se reconhecer e legitimar a variedade linguística, de modo que a escola possa ter uma abrangência maior, abarcando não apenas o dialeto das camadas privilegiadas, mas também os demais modos de falar das diferentes camadas da sociedade.

Magda Soares compreende a língua como um elemento da cultura, sendo produzida por ela, que, ao mesmo tempo, confecciona a própria vida cultural. A partir da suposição de que o código linguístico regula as relações sociais, a linguista questiona os significados pretensamente universalistas das opções gramaticais.

O fato é que quando os educadores estão imersos na interpretação da carência cultural, isso gera, em relação às crianças mais pobres, expectativas negativas, que se consubstanciariam no que os autores denominam de profecia autorrealizadora. O fato é que cada região elabora de uma maneira sua linguagem oral. Vários dialetos comporiam, portanto, uma variedade de registros, gerando, em muitos casos, manifestações de prestígio social ou de preconceito linguístico. Nem todos os estilos e nem todas as variações da língua são aceitos pela escolarização. E, nessa toada, é gerada a realidade do fracasso escolar.

A referência torna-se – de modo etnocêntrico – os padrões culturais e linguísticos das camadas privilegiadas. Contudo, Soares recorda que os usos da língua condicionam a interação verbal, demarcando posições distintas dos interlocutores e relações simbólicas de força. Haveria, no limite, um mercado linguístico, no qual as palavras tornam-se bens de troca. As regras gramaticais tornam-se ou não internalizadas pelo falante, que, antes disso, é também um ouvinte. Isso produz uma inculcação dos padrões da norma culta, havendo concomitantemente uma estratificação social pela comunicação pedagógica.

Com a tentativa de introjetar a cultura tida por legítima, a comunicação pedagógica pode inclusive representar uma violência simbólica, posto que tende a perpetuar a estratificação social quando distribui de maneira desigual o reconhecimento da língua. A atitude prescritiva diante das diferenças de linguagem gera inevitavelmente fracasso e marginalização escolar.

Em sua obra Alfabetização e Letramento, publicada originalmente em 2003, Magda Soares ocupa-se basicamente em traçar, sob vários pontos de vista, a distinção entre os dois conceitos. Alfabetização é compreendida assim como o processo de aquisição do código escrito, compreendendo nele as competências e as habilidades da leitura e da escrita. Ou seja: quando se fala em alfabetização, fala-se necessariamente em um processo que envolve uma mecânica de aquisição da linguagem escrita. No entanto, quando se alfabetiza, desenvolve-se paralelamente uma dimensão de compreensão de significados. Isso envolve o que a autora chama de letramento: a imersão da criança no reconhecimento dos usos da cultura escrita.

Letramento, então, pressupõe o domínio das competências da leitura e da escrita para além da capacidade prática e mecânica do conhecimento básico do ler e escrever. Trata-se, pois, do uso competente da leitura e da escrita. Trata-se, pois, da capacidade de fazer uso dos modos de ler e das práticas de escrever. A acepção de letramento seria, então, complementar à especificidade contida no processo da alfabetização. Esta compreende basicamente a codificação e decodificação dos significados impressos no texto e a tradução da forma sonora para a forma gráfica, como etapas fundamentais de aquisição da língua escrita. Acerca dos usos da leitura e da escrita nas práticas sociais, Magda Soares recorda que há diferenças estruturais na gramática da fala dos vários dialetos correspondentes às variadas camadas da sociedade.

Magda Soares enfrenta, ainda, um tema espinhoso na seara pedagógica: a questão da alfabetização na Educação Infantil. Recorda Soares que Emília Ferreiro dizia ser a polêmica sobre a idade certa para a alfabetização uma falsa polêmica, em virtude de ter como princípio o fato de que seriam os adultos que decidem sobre quando ocorrerá essa aprendizagem. Ninguém vai consultar as crianças? Soares entende ser recomendável que as habilidades da alfabetização e do letramento abarquem também as crianças pequenas, as quais vivem basicamente em contexto grafocêntricos. Por causa disso, a autora compreende que, na Educação Infantil, deveriam estar presentes elementos de introdução da criança nas convenções do sistema alfabético, bem como a aprendizagem dos usos sociais e culturais – qualificados como letramento.

O terceiro livro de Magda Soares que recordaremos aqui é aquele pelo qual ela recebeu o Prêmio Jabuti de 2017, Alfabetização: a Questão dos Métodos. Nessa, que foi uma de suas últimas obras, Magda Soares teoriza o tema da metodologia, identificando método como um conjunto de procedimentos linguísticos e pedagógicos voltados para a orientação da aprendizagem. Soares argumenta que, em Alfabetização: a Questão dos Métodos, ela procurou elaborar uma revisão teórica e crítica sobre o processo da alfabetização.

Na condição de ser um caminho em direção a uma finalidade, o método diz respeito a processos cognitivos do aprendizado, mas também diz respeito ao uso inteligente de diferentes teorias. Magda Soares, a propósito dos métodos, sublinha que as palavras escritas trazem três tipos de informação: ortografia, pronúncia e significado. Dependendo do ponto do qual se parta, escolhe-se um método.

De acordo com a educadora, entretanto, o ensino da habilidade da leitura e da escrita começa por qualquer um dos três elementos. E, em quaisquer dos casos, o processo de alfabetização requererá algum elemento de memorização, em virtude do fato de a criança ter de adquirir a grafia correta das palavras, considerando-se o caráter arbitrário do código escrito. A polêmica que se coloca, para o aprendizado do ler e escrever das camadas populares, à luz da variação linguística de uma realidade como a brasileira, envolve a polêmica entre o aprendizado construtivista e o ensino direto.

Sabe-se, desde o trabalho de Emília Ferreiro, que a criança experimenta a escrita, construindo hipóteses sobre sua natureza, sendo, portanto, a aprendizagem um processo ativo e intencional por parte daquele que aprende. Alguns entendem que se deve acompanhar esse processo da criança em relação à construção do próprio conhecimento sobre a leitura. Por outro lado, há aqueles que entenderão que deve haver instrução explícita que induza o estudante ao conhecimento das letras, das sílabas e das palavras.

Seja como for, Magda Soares considera que os alfabetizadores, para proceder ao ensino exitoso da leitura e da escrita, necessitam identificar o sistema de representação alfabética e as normas ortográficas, bem como os processos cognitivos e linguísticos envolvidos no processo. Mais uma vez, a autora destaca a necessidade de se superar a resistência dos educadores quanto a familiarizar a criança pequena com o contexto e com os usos da alfabetização e do letramento.

Magda Soares assevera, ainda, que as aprendizagens do ler e do escrever são muito distintas uma da outra, tanto nos aspectos linguísticos quanto cognitivos. Isso, por si, já significa que ambas as habilidades – leitura e escrita – serão formadas não por um método, mas por métodos diferentes. O grande desafio, entretanto, que se apresenta aos educadores comprometidos com a teoria e a prática da alfabetização é exatamente a maneira pela qual pode-se estabelecer uma correlação entre, de um lado, a cultura das camadas populares, especialmente aqueles que são predominantemente orais, e os processos intencionais do ensino da leitura e da escrita.

Em Letramento: um tema em três gêneros, publicado originalmente em 1998, Magda Soares retoma sua preocupação com a distinção entre o ato de adquirir as tecnologias do ler e do escrever e as práticas de inserção da leitura e da escrita nos usos sociais. A autora compreende inclusive que o letramento é um processo que gera uma transformação cognitiva. Considerando que, para a educadora, as competências da leitura são adquiridas por métodos e técnicas distintos daqueles exigidos pela competência da escrita, seria fundamental, do ponto de vista pedagógico, “alfabetizar letrando”.

Finalmente, aquela que é considerada como a maior especialista da alfabetização no Brasil, destaca que o letramento é hoje um direito humano absoluto, devendo ser assim considerado quando são pensadas e projetadas as políticas nacionais no campo da alfabetização. Que o legado de Magda Soares possa ser bem lido por nossos governantes.

(*) Carlota Boto é professora da Faculdade de Educação da USP.

 

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