Máquinas conseguem pensar?
A resposta depende de como você define as palavras “máquina” e “pensar”. Alan Turing responderia com um retumbante: sim! Eu, porém, devo acrescentar que ele concebia o ser humano como uma máquina. Uma leitura atenta do famoso paper no qual Turing formula o “jogo da imitação” revela sua visão materialista sobre a natureza do ser humano.
Obviamente, o ser humano não seria uma “máquina de estados finitos” nem tampouco um ser inanimado, porém sua inteligência ou sua consciência não dependeriam de nenhuma “Alma Imortal”. É instrutivo seu esforço retórico a fim de, por um lado, excluir os “homens nascidos da forma usual” do conjunto das “máquinas” e, por outro, restringir essas ao subconjunto dos “computadores digitais”.
Infelizmente, Turing não ousou definir a palavra “pensar”. Ao invés disso, ele, astutamente, modificou a pergunta: será que uma máquina (leia-se computador digital) é capaz de se passar por um ser humano em um jogo de perguntas e respostas? Para excluir outros fatores de distinção, o entrevistador só se comunicaria com o entrevistado remotamente, por meio de textos digitados em um terminal eletrônico.
Além disso, a máquina deveria ser programada de tal forma a imitar o comportamento humano para evitar ser identificada, por exemplo, pela velocidade e precisão em cálculos matemáticos. Para Turing, a questão original (“as máquinas conseguem pensar?”) carecia de sentido. Ele acreditava que, no final do século XX, o uso das palavras e as opiniões teriam mudado tanto que as pessoas falariam sobre “máquinas pensantes” sem grandes apreensões filosóficas.
Mesmo tendo substituído a pergunta original, Turing, usando o tradicional método escolástico, enumerou os principais argumentos contrários à possibilidade de computadores digitais “pensarem” e, em seguida, passou a discuti-los um a um. O exercício mostrou-se necessário porque o verbo “pensar” está entrelaçado a outras palavras, exigindo trabalho intelectual para desvencilhar umas das outras.
Por exemplo, alguns afirmam que a consciência é conditio sine qua non para se “pensar”. Turing discordava. Na verdade, ele considerava essa objeção uma forma de solipsismo. Será mesmo que a consciência é necessária para se “pensar”? G. H. Hardy, outro excelente matemático inglês, concordava com Turing e foi ainda mais longe, pois atribuía a atividades inconscientes um papel decisivo nas descobertas científicas. Turing reconhecia que a consciência tinha seus mistérios, mas preferiu ignorá-los. Já sobre o inconsciente não fez menção alguma.
Outra oposição mencionada relaciona-se à capacidade de distinguir o falso do verdadeiro. De fato, há resultados na Lógica Matemática que estabelecem limites gnosiológicos, isto é, limites sobre o que pode ser conhecido. Turing cita os teoremas de [Kurt] Gödel e o seu próprio como exemplos. Porém, e aqui concordo com ele, essa restrição também se estende a seres humanos. Ou seja, se a definição de “pensar” contiver a restrição de conseguir separar o falso do verdadeiro, então deveremos concluir que o ser humano não “pensa”. Ainda que haja quem concorde com ela, essa conclusão é falsa. Portanto, seja qual for a definição de “pensar”, essa deve, necessariamente, permitir algumas “imperfeições”.
Há 73 anos, quando o “jogo da imitação” foi proposto, não havia computador digital que passasse no teste, mas Turing previu que haveria um no futuro. Ele também anteviu as mudanças no uso das palavras e nas opiniões. Sete décadas depois, poucos discordarão que houve um significativo avanço tecnológico e grandes mudanças culturais. Hoje, se fizéssemos uma pesquisa de opinião, uma parte significativa das pessoas afirmaria, sem hesitação, que o ChatGPT “pensa”, seja lá o que isso signifique. Uma coisa é imaginar uma possibilidade; outra, vivenciá-la.
Os modernos sistemas de inteligência artificial nos proporcionam uma melhor compreensão dos argumentos de Turing e, paradoxalmente, iluminam nossa autocompreensão (o que nos diferencia das máquinas?). Não ser capaz de distinguir uma máquina de um ser humano é algo inquietante. Contudo, muito mais perturbador é interagir com ChatGPTs sobre duas pernas. O “jogo da imitação” transcorreu em duas frentes: a tecnologia aproximou a máquina do ser humano, e a cultura pós-cristã reificou o homem.
(*) Michel E. Beleza Yamagishi é doutor em matemática aplicada pela Unicamp.