Navegar é preciso; viver, não.
A primeira vez que ouvi esse ditado foi numa aula de Literatura no saudoso colégio Dom Bosco de Manaus. Os salesianos ajudaram a evangelizar e a educar não só a capital do estado, mas também o alto Rio Negro (mas isso fica para outro texto). Desde a juventude, tendi para a área de exatas, e tudo que era de “humanas” me parecia desnecessário ou até mesmo inútil. Assim, provavelmente estava distraído conversando com algum colega enquanto o professor esmiuçava o adágio. Resultado: passei as décadas subsequentes acreditando que, para os portugueses, navegar era mais importante que viver.
Só muito recentemente, enquanto visitava Porto Seguro, e já com os cabelos esbranquiçados, é que aprendi o sentido correto do aforismo: a navegação é uma ciência exata; a vida, não. Quisera eu poder voltar no tempo e, naqueles poucos minutos, prestar a devida atenção. Quantos sofrimentos me teriam sido poupados (e quantos evitaria de impingir a outros) se não tentasse fazer da vida uma matemática! Embora tardiamente, senti uma felicidade tão transbordante com a Verdade contida na frase que lamentei profundamente tê-la compreendido equivocadamente por tanto tempo. Viver no erro é um tipo de morte.
E. F. Schumacher, no livro A Guide for the Perplexed, divide os problemas em dois tipos: convergentes e divergentes. Grosso modo, as soluções dos problemas ditos “convergentes” são extremamente parecidos. Por exemplo, no caso da construção de um veículo de duas rodas. Esse “desafio” surgiu e ressurgiu em diferentes épocas e em diversas culturas, mas todas as “soluções” se parecem com uma bicicleta. Deu para entender? Geralmente, mas não sempre, problemas de engenharia, matemática ou de qualquer ciência exata caem nesta categoria. Já os problemas “divergentes” admitem soluções totalmente dissimilares e, às vezes, até mesmo contraditórias. Nesta classe de problemas, cabem praticamente todos aqueles do dia-a-dia. Desde a simples decisão de qual roupa vestir até as decisões complexas de um gestor de uma grande corporação.
Quem nunca se deparou com problemas (aparentemente) insolúveis e, após conversas com amigos ou colegas de trabalho descobriu (maravilhado) que não só havia solução, mas várias? As ciências exatas são extremamente úteis na solução de problemas convergentes; o mesmo não se pode afirmar em relação aos divergentes. Estes são mais complexos e demandam muito mais do Ser-humano. Saberes adquiridos ao longo de milênio e que mais se assemelham à Arte (lato sensu). Por isso, a tendência moderna de tudo matematizar é, num certo sentido, uma autocastração.
A grande ideia de Saramago no livro “História do cerco de Lisboa” foi mesclar ficção e história para examinar a relevância de nossas decisões. Alerta de spoiler: se você não leu o livro, pare aqui. Como bem nos ensina o professor Marcos Aparecido Lopes da Unicamp, o livro pode assim ser resumido: “O enredo de História do cerco de Lisboa (1989) caberia em poucas linhas e, descontando o gesto inusitado de um revisor adulterar uma passagem de um texto histórico, isto é, substituir o ‘sim’ dado pelos cruzados ao rei D. Afonso Henriques, por ocasião da tomada de Lisboa em 1137, por um ‘não’, pode-se dizer que o leitor terá em mãos uma narrativa despida de grandes lances dramáticos, reviravoltas mirabolantes ou suspenses convencionais”.
O Nobel de Literatura se perguntou: o que aconteceria se os cruzados tivessem respondido “não”? E a genialidade dele foi preservar o mesmo desfecho histórico, apesar do fictício “não”. Dessa forma, o autor deu vida ao questionamento: será que a História tem um curso inexorável que independe de nossas decisões e ações particulares? Esta é uma questão filosófica importante. Dependendo da resposta, viver pode não ser preciso.
(*) Michel Yamagishi é doutor em Matemática Aplicada pela Unicamp.