Nos tempos de meninice II
Em casa, éramos seis irmãos (pela ordem): eu, Hernane, Haydée, Hugo, Luiz e Dorila. Quando morávamos no Paraguai, mamãe tinha ajudantes para tudo. Mas quando nos mudamos para Campo Grande, ela tinha que se virar sozinha com todos os afazeres da casa. Aos poucos, ela foi dando conta. Não deve ter sido nem um pouco fácil.
Dos meus irmãos, o Hugo era aquele não gostava de tomar banho e tinha fama de preguiçoso. Depois que cresceu, ele mudou bastante, tornando-se muito responsável e o mais empreendedor da família. Mas quando menino, era daquele jeito. Mamãe não tinha como acompanhar tudo, e por isso, quando íamos dormir, ela perguntava se tínhamos tomado banho e se estava tudo em ordem.
Todos respondiam que sim, é claro. Mas ela começou a perceber que o Hugo estava escondendo alguma coisa. Quando ele já estava deitado, ela perguntava de novo e ele mostrava um pé limpo; por preguiça, ele só lavava um pé. Aí, ela notou que ele sempre mostrava o mesmo pé.
Um dia, pediu para ver o outro pé, e viu que estava todo sujo. Ela acabou descobrindo que o danado só lavava um pé. Nesse dia, ele teve que se levantar e tomar banho pra valer. Parece que ele aprendeu a lição – e o que é pior, todo mundo ficou sabendo. Inclusive vocês aqui, hoje.
Um outro dia, estávamos em casa, perto da hora do almoço, e meu irmão Hernane falou que queria comer banana. Mamãe disse pra ele esperar, porque já íamos almoçar. Mas ele insistiu: “Eu quero banana.” Mamãe falou de novo, “Espera!” Papai estava assistindo tudo.
Quando mais uma vez o Hernane reclamou, meu pai pegou um cacho de banana e obrigou o menino a comer tudo, de uma vez só. O pobre do Hernane ficou com banana saindo até pela orelha. Por um bom tempo ele não quis mais ouvir falar de banana. Depois que cresceu, ele virou o rei da mesa farta, sempre proporcionando a todos belos banquetes, como que pra se vingar daquele dia da banana.
Quando o papai comprou o Salão Cristal, em 1950 – localizado na rua 14 de Julho, entre a Rio Branco e a Afonso Pena, onde é hoje a Galeria São José –, ao lado tinha a chapelaria do Felipe Cury e depois o edifício Korndorfer, onde funcionava uma joalheria com o mesmo nome.
Esse prédio era todo chique, e tinha um elevador. Uma vez minha irmã Haydée, curiosa, entrou sozinha no elevador sem que ninguém visse, ficou presa lá dentro e começou a gritar. Foi um deus nos acuda até descobrirmos que a pequena estava trancada no elevador.
Apesar do susto e da bronca que deve ter levado, ela nunca deixaria de meter o nariz onde não era chamada: tornou-se uma excelente química em São Paulo, uma profissão em que poucas mulheres se arriscavam naquela época. Ela foi lá sem pedir licença, sempre muito independente, e nos encheu de orgulho por isso.
Quando concluí o curso primário, surgiu o grande desafio: o exame de admissão, naquela época indispensável para cursar o ginasial. Foi o meu primeiro umbral a ser transposto. Consegui, e fui admitido no Colégio Oswaldo Cruz. Essa foi uma realização marcante na minha vida e uma experiência muito rica.
O diretor, professor Luís Alexandre de Oliveira, era um grande tribuno, advogado dos mais combativos. Me lembro que tínhamos que cantar o hino nacional. Uma vez por semana, o professor Luís Alexandre nos brindava com uma grande peroração cívica, exaltando o nosso país e seus heróis. Diante do colégio, cada série em fila, e os menores na frente. Eu era um dos mais pequenos e ficava bem próximo dele, cara a cara.
Quando o dr. Luís Alexandre se entusiasmava, ele cuspia na gente mas não podíamos passar a mão no rosto pra não constrangê-lo, ou seja, tínhamos que aguentar a longa fala até o fim sem sair do lugar. Duvido que uma criança de hoje aturaria isso calada. Outros tempos...
Um dia desses, conversando sobre a rua 7 de Setembro com o dr. João Pereira da Rosa – fundador e primeiro reitor da universidade estadual e depois federal –, ele me contou que quando era menino, era encarregado de fazer cobrança para uma loja de tecidos, a Loja Nacional, de um judeu que vendia roupa para as meninas da rua 7, no mesmo período em que eu morei por lá. Todos os meses lá ia o Joãozinho, fazer suas cobranças.
Disseram pra ele que tivesse cuidado no trato com as meninas, porque poderia pegar uma doença venérea, o que lhe causava um verdadeiro pavor, embora o relacionamento com elas fosse somente de cobrança, sem o menor contato físico.
Mas menino, não sabia disso. Ele tinha um medo terrível de chegar perto das mulheres de quem tinha que cobrar. Entrava sem olhar para os lados e saía correndo com medo, sem que as meninas entendessem por que aquela pressa toda.
Lembranças de guri, das quais tenho bastante saudade e me aquecem o coração.
(*) Heitor Rodrigues Freire é corretor de imóveis e advogado.
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