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O dever da vacinação

Charles Mady e Fernando Mady (*) | 25/03/2021 10:31

Em 11 de março 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou “estado de pandemia”, causada pelo vírus sars-cov-2. Mortes e sofrimentos tomaram o mundo, alterando hábitos seculares. As consequências sociais e econômicas estão sendo graves, além da “pandemia” psicológica, que está levando a população de todo o mundo a apresentar elevação da incidência de transtornos, como ansiedade, pânico e depressão, além do aumento de casos de suicídio.

Desde o aparecimento do vírus, diversos laboratórios iniciaram pesquisas para desenvolver meios preventivos e curativos, na tentativa de diminuir a morbidade e mortalidade dessa doença. Esta permanecerá, por enquanto com gravidade crescente, até que a ciência consiga nos levar a um estado de equilíbrio, como resultado de seus estudos. Infelizmente, parte da população se tornou fator agravante, por não aderir às recomendações dos especialistas da área de saúde.

Basta observar relatos de festas, presença em praias lotadas, o não uso de máscaras, e até o mau exemplo de autoridades infectadas confraternizando com seus pares em cerimônias oficiais e não oficiais, como se nada estivesse acontecendo. Aliás, os exemplos vindos das camadas superiores do poder político e econômico foram os piores possíveis.

A questão que se põe, portanto, no presente artigo, é definir se existe dever de vacinação, ou não, contra esse vírus, causador dessa calamidade, e que se torna a cada dia mais agressivo. Qual valor é mais relevante, a saúde pública ou a liberdade de uma pessoa? Pode-se obrigar alguém a se vacinar? Pode-se aceitar a liberdade individual, de se negar a ser vacinado, e ser um fator de risco aos que o cercam?

Considerando que a covid-19, a cada novo contágio, foi sofrendo mutações e criando novas cepas, os deveres e obrigações, individuais e coletivos, se tornam ainda mais importantes. Havendo aumento no grau de transmissibilidade entre as pessoas e, talvez, de letalidade, o que agravou ainda mais a situação, torna esta discussão fundamental. O acesso à vacina garante, pelo menos parcialmente, não só a defesa contra a infecção, como também deverá prevenir a transmissão a terceiros, que geralmente são parentes e amigos vulneráveis.

A obrigatoriedade da vacinação está sendo discutida nos órgãos de cúpula do governo, inclusive o Supremo Tribunal Federal, o ápice do Poder Judiciário. A norma máxima do Brasil enuncia que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. Do contrário, o Estado não tem poder para impor nenhuma obrigação aos seus cidadãos.

A lei que estabelece as medidas de combate à covid-19 foi editada e publicada no Diário Oficial de 06/02/2020, após a aprovação do Congresso Nacional e sanção do presidente da República. A Lei nº 13.979, de 06/02/2020, ou de combate à pandemia do coronavírus, assim dispõe: “Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas (…) III – determinação de realização compulsória de: d) vacinação e outras medidas profiláticas”.

A Suprema Corte foi acionada, via Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 6.586 e 6.587, na tentativa de se invalidar a lei da pandemia com base na Constituição Federal. A conclusão dos ministros foi a de que não são legítimas as escolhas individuais que atentem contra os direitos de terceiros.

Assim, o Estado pode impor a vacinação compulsória a todo o povo brasileiro, contanto que não seja forçada, embora possa implementar, por meio de medidas indiretas, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes.

Cabe lembrar ao leitor que é crime, punido com prisão e multa, a prática de ato capaz de produzir o contágio a outrem, com o fim de transmitir moléstia grave de quem está contaminado. Mas não é só. É, inclusive, a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo direto e iminente (Código Penal, art. 131 e 132).

O assunto é complexo, tanto pelo lado da saúde pública, que é o ponto fundamental em questão, como pelas interpretações jurídicas, que podem assumir quaisquer posições. Problemas como a falta de políticas adequadas, ou por desconhecimento, ou por incompetência das autoridades estabelecidas democraticamente, associados aos erros cometidos na compra e distribuição de vacinas, permitiram que o tempo de discussão pudesse se alongar.

A falta de colaboração da sociedade, incluídas as classes sociais, políticas, e jurídicas, nas medidas preventivas deve ser fator importante nas discussões a se realizar. Conclusões adultas devem ser atingidas, para o bem de todos, sempre tendo em mente que o bem comum está acima de opiniões pessoais. Interesses individuais, em situações como a que estamos enfrentando, não devem se sobrepor aos interesses coletivos. Infelizmente, não estamos suficientemente evoluídos para ter a colaboração de todos.

Conforme Immanuel Kant ressalta:

“Não basta que atribuamos liberdade à nossa vontade, seja por que razão for, se não tivermos também razão o suficiente para a atribuirmos a outros indivíduos”.

(*) Charles Mady é professor associado da Faculdade de Medicina da USP e Fernando K. Mady, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP.

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