O emprego das metáforas bélicas no câncer
Amaioria dos conceitos, particularmente aqueles que são abstratos ou complexos, passam a ser parcialmente compreendidos, por intermédio de outros, que resultam mais familiares. As metáforas são, portanto, veículos de compreensão, que associam o conhecido com o desconhecido. Na linguagem médica, constituem ferramentas que permitem economizar tempo, ao tentar auxiliar os pacientes a entender processos biológicos complexos, o que pode ser-lhes de utilidade, na medida em que partilham ordem, em um mundo repentinamente desordenado, ajudando-os a interpretar o que estão sentindo, a se comunicar com outros de maneira concreta e assim, controlar simbolicamente a enfermidade.
Para médicos e pacientes, a “guerra” é uma metáfora dominante, e isso responde ao fato de ser onipresente, pois reporta-se comumente no combate às drogas, pobreza, analfabetismo, gravidez na adolescência, entre outros males. Contudo, descrever “algo” como um câncer, pode ser irremediavelmente prejudicial ao fomentar a culpa, o fatalismo e a adoção de medidas severas e radicais.
Resulta fácil adaptar-se à doença onde comprova-se uma correspondência metafórica aparentemente perfeita: existe um inimigo (a doença), um comandante (o médico), um combatente (o paciente), aliados (a equipe de saúde), um armamento formidável (que incluem armas químicas, biológicas e nucleares) e um extenso campo de batalha (o organismo). A guerra, associada à força, poder e agressão, se contrapõe à impotência e passividade advindas de enfermidades crônicas, socialmente consideradas letais.
O uso de metáforas bélicas ressoa na prática médica. No entanto, como tudo o que resulta excessivo, tem limitações que devem ser consideradas. Os benefícios que permitem ao paciente compreender certos aspectos da experiencia do câncer podem minimizar ou ocultar outros. Além disso, o enfoque dado é inerentemente masculino, baseado no poder paternalista e violento, reforçando qualidades quase que homéricas. Para alguns pacientes, conflitos e contendas não são as formas escolhida para lidar com a doença. Vencer o inimigo implica lutar suficientemente bem, conhecer o adversário e dispor de estratégias que garantam a vitória, em todos os âmbitos possíveis. Mas, para a grande maioria das enfermidades oncológicas, isso não se aplica. Limitações no armamento e na compreensão do inimigo criam falhas inevitáveis de tratamento, assim como incrementam a fila dos injustamente chamados “perdedores”. Por outra parte, aqueles que as padecem, seguramente não se vão a beneficiar ao ouvir o nome de sua enfermidade, constantemente publicitada como epítome do mal.
Dentro do contexto da metáfora marcial, os doentes que “falham na luta” transitarão para um modelo estritamente paliativo ou que requer de internação, denunciando implicitamente, “o fracasso”. O desejo de continuar lutando, de não perder, de ser corajoso, pode alentar médicos e pacientes a embarcar em terapias de resgate adicionais e onerosas, agravando ainda mais a penosa “derrota”.
Nessa cultura de luta permanente, o resto da existência do paciente é frequentemente desconsiderado ou suspenso, pois todos os recursos estão focados no esforço que demanda a guerra. Esse foco intenso pode obrar como barreira para entendimentos alternativos que envolvam sua vida emocional, afetiva e social.
Embora as metáforas facilitem a comunicação e deem coerência a eventos distintivos da doença, servindo como ferramentas para estabelecer um entendimento consensual na relação terapêutica, elas também envolvem um compromisso potencial entre a criação de uma maior compreensão e o risco de apropriação indébita e perigosa, como já comentado.
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