Pandemia, sexismo, saúde mental, refugiados, LGBTQIA+ e muita emoção em Tóquio
Minha primeira lembrança dos jogos olímpicos data de 1980 – Olimpíada da Rússia, que teve como mascote o simpático ursinho Misha. No encerramento dos jogos, Misha deixa escorrer uma lágrima, que ficou eternizada num mosaico detalhadamente montado nas arquibancadas do estádio olímpico. Esta Olimpíada foi marcada por um boicote, por conta da guerra fria que o mundo vivia, que se estendeu até a Olimpíada de 1984, em Los Angeles, com um novo boicote organizado pelo outro lado – capitalismo x socialismo.
Estamos em 2021, e a guerra agora é contra um vírus denominado sars-cov-2, que provoca uma infecção respiratória aguda, potencialmente grave, de elevada transmissibilidade e de distribuição global, que causou uma pandemia que parou o mundo.
É neste cenário que acontece a Olimpíada de Tóquio 2020, em 2021, sem plateia, mas não menos emocionante, com o esporte, mais uma vez, cumprindo sua missão, ou seja, agindo como uma importante ferramenta para a reflexão sobre nossas lutas diárias representadas pelos atletas olímpicos.
Antes de iniciar os Jogos Olímpicos de Tóquio, o Brasil foi apresentado a um jogador da Seleção de Vôlei que atraiu do dia para a noite, literalmente, em torno de dois milhões de seguidores. Estamos falando de Douglas, que trouxe junto com sua capacidade esportiva a bandeira LGBTQIA+. Aliás, esta bandeira nunca esteve tão bem representada como nestes jogos, com o maior número de atletas assumidamente da comunidade. São pelo menos 160 atletas LGBTQIA+, e pela primeira vez um atleta trans compete. Por este motivo, os Jogos Olímpicos de Tóquio entrarão para a história não só como a Olimpíada da pandemia, mas também como a da diversidade e da defesa de igualdade de gêneros.
E é exatamente nesta esteira da defesa de igualdade de gêneros e do combate ao sexismo, que surge o movimento representado pelas ginastas alemãs, que marcaram posição com uniformes que cobrem todo o corpo, seguidas por atletas de outras modalidades que se negaram a vestir modelos que não apresentam outra função que não explorar o corpo feminino. O movimento surtiu efeito num curtíssimo espaço de tempo, a ponto de o COI publicar um guia para garantir tratamento menos sexista durante as transmissões dos jogos olímpicos.
Em todos os jogos, sempre haverá campeões olímpicos e alguns pouquíssimos atletas alçados ao patamar dos “deuses do Olimpo”. Para evitar injustiças, vou citar apenas os mais recentes, Phelps na natação e Bolt no atletismo.
Em Tóquio, a aposta era toda sobre uma garota negra americana, Simone Biles, representante da ginástica artística, o mesmo esporte que já teve Nádia Comaneci alçada ao mesmo patamar. Biles poderia ter ganho todas as medalhas de ouro possíveis e imagináveis e confirmar seu lugar no lugar mais alto dos jogos, aquele que fica acima dos medalhistas olímpicos, mas preferiu fazer melhor, alertar para a saúde mental dos atletas e – por que não – sobre a nossa própria saúde mental, em tempos tão difíceis de pandemia.
Numa analogia ao caso Biles, temos o exemplo dos pés das bailarinas “com e sem sapatilhas”. Em geral, estamos acostumados a assisti-las com as sapatilhas, fato que nos preserva do impacto de enxergar o que horas e horas de ensaios provocam em seus pés. O que a corajosa Biles fez foi mostrar os pés sem as sapatilhas e alertar para o fato de que somos mais importantes que nossas conquistas. Tenho esperanças de que Biles ainda voltará, mais forte do que nunca para conquistar todas as medalhas, fruto de sua dedicação ao esporte, mas o seu papel nestes jogos ela já cumpriu e com louvores.
Estes jogos também estão sendo marcados pela equipe mais numerosa de atletas olímpicos refugiados. São 29 atletas de 11 nacionalidades, que competem sob a proteção da bandeira olímpica. Escapando dos seus países natais por causa de conflitos, guerras civis e bombardeios, boa parte dos atletas acabou sendo abraçada pela Agência da Organização das Nações Unidas para refugiados ainda durante a infância. A iniciativa da formação de uma equipe olímpica de refugiados foi do presidente do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach, e ocorreu pela primeira vez, na Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016.
Por tudo o que já aconteceu até agora nestes jogos, tudo indica que também será marcado fortemente pela participação feminina e, com relação ao Brasil, isto já é um fato.
Rayssa, a Fadinha do skate, fez história com sua medalha de prata, não só pela importância da conquista, mas também por ser a primeira da história olímpica nesta modalidade. Temos também Laura Pigossi e Luisa Stefani que conquistaram a medalha de bronze, a primeira do Brasil no tênis. Não podermos esquecer, ainda, do feito da judoca Mayra Aguiar, a primeira atleta brasileira de esportes individuais a ganhar três medalhas olímpicas – 2012, 2016 e em Tóquio. E como não falar da nossa ginasta Rebeca e seu baile na favela? Prata no individual geral e ouro no salto, Rebeca é a primeira brasileira a ganhar duas medalhas na mesma edição olímpica.
Os jogos olímpicos, sem margem de dúvidas, mexem com nossas emoções e mesmo aqueles mais resistentes à prática regular de exercícios físicos, nestes dias encontram um momento para vibrar, chorar e comemorar com os atletas.
Infelizmente, isto só ocorre de quatro em quatro anos, e nossas conquistas são muito mais em função da abnegação de atletas, treinadores e familiares do que fruto de um projeto olímpico bem elaborado, que inclua políticas públicas que permitam o acesso ao esporte para um número maior de crianças e adolescentes. Se tivéssemos um planejamento a longo prazo para a formação de atletas, quem sabe o nosso surfista Ítalo, ganhador da primeira medalha de ouro da história dos jogos olímpicos nesta modalidade, não precisasse ter iniciado no surf em cima de tampas de isopor vindas da peixaria em que seu pai trabalhava.
A verdade é que ganhamos medalhas olímpicas apesar de tudo, ou melhor, apesar de nada, sem levar ainda em consideração a chance que perdemos de usar o esporte como uma importante ferramenta de educação e formação de cidadãos. Mais do que formar campeões, o esporte sempre mostrou que é capaz de educar pessoas para que saibam respeitar as diferenças e, neste ponto, Tóquio 2020 já ganhou medalha de ouro.
(*) Hugo Tourinho Filho é professor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto da USP.