Políticas públicas contra a fome no Brasil – estado da arte
Nas últimas décadas a segurança alimentar ganhou destaque no debate acadêmico e político, impulsionado pelas experiências de combate à fome em países em desenvolvimento e pela incerteza em relação aos efeitos das mudanças climáticas sobre a oferta de alimentos. Houve uma mudança de paradigma no enfrentamento da fome. Primeiro, a alimentação foi reconhecida como direito social. Está na nossa Constituição, artigo 6°. O conceito de segurança alimentar tira o problema da fome da esfera exclusivamente privada.
A segunda mudança refere-se ao entendimento de que a insegurança alimentar e nutricional não se reduz à pobreza, apesar de, numa sociedade mercantil, estar fortemente associada a ela. Não se trata somente de saber o quanto se come, mas o que e como se come. A pobreza não está somente associada à falta de alimento, mas também à má alimentação, que vai se expressar na obesidade e em doenças metabólicas. Unidades da federação com nível e distribuição de renda semelhantes têm níveis de insegurança alimentar diferentes, revelados tanto pela aplicação direta de escalas de insegurança alimentar, quanto pelos efeitos da desnutrição na população. Esse mesmo fenômeno pode ser observado em famílias com renda per capita semelhantes apresentando situações de insegurança alimentar significativamente diferentes. A capacidade de manejar os recursos disponíveis, eventos passados na história da família e o enraizamento social, entre outros fatores, estão por trás dessas diferenças.
Então não é só a renda: a organização da sociedade civil e a qualidade do governo importam. E não é só a quantidade de alimento, mas a qualidade. Uma questão da agenda contemporânea é a criação de incentivos para a mudança de padrões alimentares mais saudáveis para os consumidores e para o planeta.
O terceiro ponto é a consciência de que não existe bala de prata para resolver o problema da fome. Só vontade política não basta. É preciso que a busca da segurança alimentar e nutricional se transforme em política de Estado, com o aperfeiçoamento contínuo dos programas de segurança alimentar e nutricional. Como a insegurança alimentar emerge em contextos socioeconômicos distintos, é preciso um amplo arsenal de instrumentos de política para lutar contra a fome em diferentes terrenos. A pandemia iniciada em 2019 despertou a preocupação com a produção e distribuição capilarizada de alimentos. O Estado é pequeno demais para garantir renda suficiente para todos, mas pequeno demais para identificar e fazer chegar o alimento para os mais vulneráveis. Daí a necessidade da colaboração das organizações locais da sociedade civil.
Ademais, novos problemas emergem, exigindo soluções inovadoras. Hoje já se aponta a questão da insegurança hídrica, que tem uma interface forte com o saneamento e a segurança alimentar. As soluções para o problema da insegurança alimentar e nutricional devem contribuir para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável relacionados ao meio ambiente e à saúde humana e animal. Já chegamos ao reconhecimento amplo de que ambiente, sociedade e indivíduos só podem permanecer saudáveis no longo prazo se evoluírem juntos.
A percepção de que a insegurança alimentar e nutricional demanda uma abordagem sistêmica não é nova. Em 1953, Josué de Castro, então presidente da Comissão Nacional de Alimentação, vinculada ao Ministério da Educação e Saúde, propôs um plano para o combate à desnutrição que foi interpretada ao mesmo tempo como resultado da estrutura social e fator de reprodução dessa mesma estrutura. A desnutrição, escreveu Josué de Castro, “está contribuindo para um rápido desgaste dos nossos recursos humanos”. As crianças, “se sobrevivem ao naufrágio alimentar que as envolve, podem ser vistas nos bancos escolares […] mirradas, desatentas, desinteressadas”. Havia, pois, um círculo vicioso de reprodução da pobreza e da fome.
Do plano de Josué de Castro, somente o Programa de Alimentação Escolar foi implementado, tendo continuidade e aperfeiçoamentos até hoje. Diversas políticas, ainda que tivessem outros objetivos, acabaram contribuindo para melhorar a segurança alimentar. É o caso da modernização da agricultura baseada em pesquisa agropecuária, extensão rural e crédito subsidiado, bem como da construção de uma infraestrutura de distribuição, do programa de alimentação do trabalhador, além de programas específicos como o Programa Nacional de Leite para Crianças Carentes. Tais políticas careciam, em geral, de articulação entre si.
Houve tentativas de dar um enfoque transversal e sistêmico às políticas de segurança alimentar, como o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição – Pronan, de 1976. Em 1995, já na redemocratização, foi criado o Programa Comunidade Solidária, com o propósito de coordenar as ações governamentais voltadas para o atendimento da parcela da população que não dispõe de meios para prover suas necessidades básicas e, em especial, o combate à fome e à pobreza. A inovação foi o chamamento à sociedade civil para se engajar no combate à fome. Em 2003, o Fome Zero, que substituiu o Comunidade Solidária, recebeu a maior prioridade do governo federal, expressa na criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. Ainda no escopo do Fome Zero, foi criado o Programa Bolsa Família, que unificou diversos programas de transferência de renda.
A unificação representou um avanço institucional, mas ainda há espaço para aperfeiçoamentos, sobretudo na identificação de cidadãos que permanecem invisíveis para as políticas públicas. A inteligência artificial e a capacidade de integrar grandes massas de informação podem contribuir para este propósito. O aprendizado que ficou é o da necessidade de articulação dos programas de segurança alimentar, buscando a coerência entre ações dos três níveis de governo e das organizações da sociedade civil. A universidade tem um papel nessa articulação, que, para ser efetiva, precisa se basear em evidências empíricas, em pesquisa.
(*) Rubens Nunes é professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP