Por uma universidade antirracista
Em 9 de fevereiro último, houve novo ataque racista em evento on-line realizado pela Universidade de São Paulo, durante a conferência internacional de segurança pública (parte da 1ª edição do curso de Segurança Multidimensional das Fronteiras, da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial).
nquanto Evanilson Corrêa de Souza, tenente-coronel da Polícia Militar, preparava-se para ministrar sua aula sobre racismo estrutural e participação de policiais militares no sistema de preconceito, um dos participantes do curso usou termos racistas para se dirigir a Evanilson e invadiu seus slides da apresentação com rabiscos e a palavra “macaco”.
Posteriormente, outro participante proferiu injúrias racistas no chat, mas foi retirado da sala pela equipe responsável pelo curso. Depois de retomar o controle dos slides, Evanilson realizou sua apresentação.
Foi realizado um boletim de ocorrência dos fatos, assim como instaurado um inquérito policial para apurar a autoria do crime na delegacia especializada em crimes de intolerância. A Reitoria da USP se manifestou repudiando o ocorrido, afirmando: “Infelizmente, o combate ao racismo de toda sorte incita humores de uma minoria retrógrada e beligerante que tira proveito das fragilidades da internet para mostrar o seu lado mais sombrio”.
Esse não é o primeiro nem será, provável e infelizmente, o último ataque racista perpetrado em eventos acadêmicos on-line da Universidade de São Paulo. As próprias autoras do texto tiveram evento invadido em novembro do ano passado, em que se discutia o acesso à Justiça e o racismo estrutural.
Com o isolamento social, os eventos da Universidade de São Paulo passaram a ser realizados de maneira on-line. Enquanto há a vantagem de possibilitar participações nacionais e internacionais de convidados e expositores, também há maior vulnerabilidade a manifestações de intolerância dirigidas contra grupos minorizados na sociedade. Existem esforços coordenados por grupos de ódio e ideologias discriminatórias (racistas, sexistas, LGBTfóbicos) para invasão de eventos acadêmicos, valendo-se do anonimato das redes.
Se manifestações de intolerância e, principalmente, racismo fazem parte da história e criação da democracia brasileira, existem elementos sociopolíticos recentes que devem ser levados em consideração na tentativa de explicar tais manifestações contemporaneamente.
Em primeiro lugar, há crescente ocupação dos espaços de poder, na Universidade e fora dela, de pessoas negras, resultante de uma luta histórica do movimento negro. As cotas raciais, ainda que adotadas pela USP tardiamente, apenas para Fuvest de 2018, e sem comitê para investigação de fraudes, possibilitam o ingresso de maior número de alunos negros em um espaço tradicionalmente ocupado pela elite social e econômica (leia-se, branca) de São Paulo. Outro exemplo é a determinação do TSE de cota do fundo eleitoral e do tempo de propaganda eleitoral gratuita para candidatos negros.
Esse movimento de avanço na consolidação de direitos e redução de desigualdades históricas é paralelo ao crescente autoritarismo e retrocesso em matéria de direitos. O autoritarismo atua recorrentemente para a negação da ciência, redução dos espaços de discussão científica, ataque à liberdade acadêmica e à autonomia das universidades.
Outro fronte do movimento autoritário e voltado a desmobilizar instituições e estruturas de governo ligadas aos direitos sociais, desvirtuando seu propósito, como é o caso da Fundação Palmares, conquista do movimento negro, que tem em sua direção Sérgio Camargo, que chamou o movimento social de “escória maldita” e Zumbi de “filho da puta que escravizava pretos”.
Kabengele Munanga explica a manutenção do racismo através da frase de Elie Wiesel, “o carrasco sempre mata duas vezes, a segunda é pelo silêncio”, prática característica do racismo brasileiro que sempre mata duas vezes: fisicamente, como mostram as estatísticas sobre a genocídio da juventude negra em nossas periferias; e mata na inibição da manifestação da consciência de todos, brancos e negros, sobre a existência do racismo em nossa sociedade.
Considerando o racismo estrutural característico da sociedade brasileira, somado ao movimento de retrocesso, é mais do que nunca fundamental a construção de universidades antirracistas.
O ambiente acadêmico é um local para aprimoramento e desenvolvimento humano, por meio do conhecimento, da pesquisa e da ciência. A educação tem ainda a característica de preparar profissionais para atuar nas mais diversas áreas, lidando com a pluralidade de ideias e diversidade de pessoas.
As diretrizes constitucionais são claras ao determinar como princípio o repúdio ao racismo, conforme o Art. 4º, inciso VIII. Para discussão do antirracismo na esfera da educação, a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394/96) prevê que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
O artigo 26-A da referida lei ressalta a importância do estudo da história e culturas afro-brasileira e indígena. A educação superior, por seu turno, tem por finalidade estimular o desenvolvimento do pensamento reflexivo e a criação cultural.
É dever das universidades abordar de forma analítica os contextos sociais, históricos e econômicos do racismo. O reconhecimento do racismo institucional é fundamental para a construção de um pensamento crítico acerca da falsa “democracia racial” e o autoengano da branquitude existentes no Brasil, e para a promoção de uma educação plural, inclusiva e diversa. Ainda, com o crescimento considerável de estudantes negros nos últimos anos, é necessária uma reorganização interna nas instituições de ensino, que não foram criadas pensando na inclusão da população negra.
Por meio de nota técnica do ano de 2020, ante o cenário de constantes ataques virtuais racistas, a Comissão de Graduação, Pós-Graduação e Pesquisa da OAB de São Paulo, por meio de suas presidentes Amarílis Costa, Raphaella Reis e Lazara Carvalho, propôs, além de ações afirmativas alinhadas ao movimento antirracista, para melhor garantia de um ingresso e permanência digna de estudantes negros em espaços universitários, recomendações expressas para combate ao racismo em ambiente universitário. São elas:
1. Criação de canal oficial de denúncia para apuração de práticas discriminatórias e racistas nas universidades;
2. Criação de programa de acolhida e acompanhamento psicológico para alunos negros;
3. Criação de uma grade curricular que amplie o direito antidiscriminatório e abordagem de temáticas étnico-raciais para além das datas oficiais (Dia do Índio, Dia da Consciência Negra, Dia da Abolição da Escravatura), bem como o incentivo a palestras e debates voltados ao processo de conhecimento da racialização, branquitude, privilégios e identificação racial;
4. Criação de setores voltados diretamente ao compliance antidiscriminatório, que serão responsáveis pela fiscalização e garantia de políticas e posicionamentos internos efetivos para a prevenção e combate de práticas discriminatórias;
5. Formação do corpo docente para o combate de posturas discriminatórias e contribuição permanente para uma sociedade mais justa e igualitária.
A educação vai além da possibilidade de se obter um emprego ou do aumento de renda. É importante para o desenvolvimento econômico, social e cultural de um país. Este desenvolvimento só é alcançado por meio da formação que ultrapassa os campos teóricos, despertando o pensamento crítico e questionador capaz de romper com o status quo e com os próprios privilégios, em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.
(*) Susana Henriques da Costa, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP e promotora de Justiça do MPSP, Amarilis Costa, advogada e professora de Direito e Gestão Pública, e Marina Gonçalves Garrote, mestranda na FD/USP