Repetência escolar como expressão de etnocentrismo
Na atualidade, a escola brasileira consegue receber quase toda a população em idade escolar. Apesar do importante avanço que isso significa em termos de garantia do direito à educação, ainda existem exclusões persistentes que precisam ser consideradas. Uma delas diz respeito às altas taxas de reprovação.
Segundo o Censo Escolar, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Ensino Fundamental tinha recebido 99,3% do grupo etário dos 6 e 14 anos em 2018. Havia 48,5 milhões de alunos matriculados na Educação Básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio).
Desses, cerca de 2.520.000 foram reprovados naquele ano. A taxa de reprovação foi de 5,9% nos anos iniciais do Ensino Fundamental (do 1.º ao 5.º ano), 10,6% nos anos finais do Ensino Fundamental (do 6.º ao 9.º ano) e 11,5% no Ensino Médio.
A reprovação escolar é um fenômeno antigo, expressivo e persistente na história brasileira. Nos anos 1930, menos da metade das crianças que chegavam a ser matriculadas nas ainda escassas escolas existentes no país eram aprovadas ao final de um ano letivo. Aos poucos, os percentuais de reprovação tiveram alguma redução.
Em 1950, a aprovação no ensino primário era em torno de 53,9%. Em 1977, dos 20,3 milhões de alunos matriculados no Ensino de 1.º grau, 70% foram aprovados. Apesar desses avanços, é preciso reconhecer a lentidão na melhoria da situação e observar que, no Brasil, ainda hoje, os índices são altos e – cabe acrescentar – mais altos do que nos demais países da América Latina.
Ao longo da história, as explicações sobre as possíveis causas dessa situação tenderam a acenar para uma lamentável combinação entre a condição de pobreza da população e a suposta má qualidade da educação disponibilizada. Disso decorreria a impossibilidade de que a maior parte dos alunos chegasse a aprender adequadamente. No entanto, a análise especializada permite afirmar que a reprovação escolar não nos fornece informações sobre a qualidade das práticas de ensino ou sobre a efetividade das aprendizagens.
Pela variedade de critérios de avaliação utilizados em cada escola, pelas diferentes expectativas dos professores quanto ao desempenho dos alunos, pelo fato de a reprovação ser utilizada também como forma de punição por comportamentos considerados inadequados, entre outros aspectos, essas estatísticas dizem muito pouco sobre o que se ensina e o que se aprende. Por outro lado, acabam dizendo bastante sobre o apego da escola a práticas seletivas e excludentes.
Nos debates sobre o tema, costuma ficar de fora da argumentação a observação de que existe uma persistente suposição de má “qualidade” do alunado. Poucas vezes tem comparecido ao debate o reconhecimento de que a sociedade brasileira se estruturou em meio à desconfiança de que um povo miscigenado pudesse apresentar as qualidades necessárias para a construção da nação nos moldes civilizatórios europeus assumidos como desejo das elites locais desde o século XIX.
Aqui quero sublinhar o que as pesquisas históricas e sociológicas evidenciam: na sociedade brasileira, é comum a distribuição de privilégios (sobrepondo-se à garantia de direitos) baseada em práticas de classificação e hierarquização de pessoas, a partir da posição social e da cor. A discriminação social e o racismo são estruturantes das relações cotidianas, inclusive no âmbito das instituições republicanas, e produzem efeitos também nas classificações escolares.
Toda classificação e hierarquização precisa de uma referência a partir da qual se organizam os elementos avaliados – do melhor ao pior. Decorrente do processo de colonização, subalternização e domínio realizado por povos europeus desde o século XVI, consolidou-se e difundiram-se como medidas-padrão a cultura, os valores e as racionalidades desses povos e, com base nisso, procedeu-se à avaliação e à classificação de todos os demais povos ao redor do mundo. Daí a afirmação muitas vezes reiterada de que os países latino-americanos estariam “atrasados” no processo civilizatório.
E o que isso tem a ver com repetência escolar? Em meu último livro, publicado em junho pela editora Routledge, sustento a tese de que as altas taxas de reprovação escolar não expressam a falta de aprendizagem ou má qualidade do ensino, mas a baixa expectativa, historicamente constituída, quanto à capacidade intelectual da população brasileira. A reprovação apresenta em números a persistente suposição – preconceituosa e racista – de que os alunos brasileiros não teriam boa qualidade.
Daí que, a despeito das muitas evidências de que a escola melhorou expressivamente nos últimos cem anos, os debates seguem afirmando erroneamente que a escola do passado era melhor. O que acontece é que a expectativa de que o aluno brasileiro não seja suficientemente capaz de aprender (de aprender bem, de aprender muito, de desempenhar com qualidade) se antecipa e prevalece a qualquer outra análise.
Apegados a critérios etnocêntricos, buscamos referências externas para organizar e avaliar a escola brasileira. E, procedendo a uma inversão cruel e submissa, assumimos a descrição da escola brasileira sempre pelo que nela falta em relação à escola etnocentricamente organizada.
Por fim, quero sublinhar que considero que não se trata de abrir mão da escola no Brasil. Instituição importada e ferramenta de imposição cultural, a escola é também um lugar de garantia do direito de todos à educação em sociedades democráticas e plurais. Assim, penso que o importante é questionar a imposição de um único modo de fazer a escola, de conteúdos padronizados e de um único critério de qualidade em educação no mundo.
Em lugar de insistir em buscar uma abstrata qualidade que se difunde globalmente a partir dos interesses de um local que se impõe como universal, vale a pena construir localmente as possibilidades educativas que dão sentido à formação humana em cada local específico.
(*) Natália Gil é professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós Graduação em Educação.