Sabores indígenas parecem irrelevantes para “mundo do branco”
A primeira surpresa ao caminhar pela área indígena do Mercadão Municipal de Campo Grande foi com a imagem de uma tribo da região, impressa em estande. No lugar do rosto de dois dos cinco integrantes da foto havia buracos para que os visitantes pudessem tirar fotos “vestidos de índio”.
Senti vergonha ao ver algo assim na cidade onde nasci e vivi quase sempre. Continuei em direção aos quiosques de venda com a sensação de invasor. Na primeira barraquinha que parei, comprei quatro saquinhos de pimenta-bode, um ingrediente valioso no centro-oeste.
Em seguida me identifiquei como estudante de Gastronomia e questionei a vendedora sobre a possibilidade de relatar seus costumes e tradições. Senti que a situação causou certo desagrado. Trocamos poucas palavras e continuei a explorar o local.
Em outro quiosque, continuo a observar e tentar identificar os produtos ali expostos: mudas de taioba, muito milho, diversos tipos de abóbora, grãos de urucum, leite de mangaba, pequi fresco e em conserva, maxixe, jiló, uma grande quantidade de cabaças (para confecção de chocalhos, recipientes, etc.), palmitos juçara e guariroba, uma colmeia de abelhas Jataí, entre outros. Pude viajar pela nossa história, traçando a origem de cada insumo aos seus respectivos continentes e imaginando a trajetória que cada um deles fez até chegar ali.
Me aproximei da vendedora, que mais tarde se identificou como Manita, e comecei a me apresentar, falando sobre minhas intenções ali. A princípio, as respostas foram esquivas. Disse que não tinha muito a relatar, pois teve sua vida tribal apenas até os dez anos. Citou a chef de cozinha Kalymaracaya Nogueira, até então por mim desconhecida, elogiou seu trabalho de resgate cultural e disse que era uma melhor opção para entrevista. Pude perceber a insegurança em sua fala. “Não sei nada”.
Entendi melhor nesse diálogo como funciona a relação homem branco-nativo.
Dez anos de conhecimento tribal são irrelevantes no “mundo do branco”. O que importa aqui é a academia, o trabalho formal, o capital, o nome. Ao mesmo tempo, não há espaço nesses ambientes para os indígenas.
Senti profunda tristeza.
Continuei a questioná-la sobre seus anos na tribo. Manita relatou brevemente sobre a carne de caça, a mandioca assada, o “coquinho” (Jerivá). Lembrou de forma saudosa do fogo “de chão”. Me surpreendi ao saber que era comum preparar um mingau de farinha de Jatobá, feito com água ou leite. “Água de poço ou dos animais mesmo, nunca ficávamos doentes”.
Seu pai tinha uma carroça toda feita de madeira e criava gado. Sua mãe plantava feijão de corda. Sua avó possuía um conhecimento raro nos dias de hoje: observava a flora e sabia, além de diferenciar as diferentes espécies de plantas que cresciam naturalmente ao seu redor, identificar seus benefícios medicinais e as diversas formas de aplicá-los.
“Quando alguém tinha alguma dor, minha vó ia no mato e pegava algumas plantas. Moía, cozinhava e dava pra gente beber. Ela morreu com vários anos, mais de cem. Quando eu vim pra cidade, ficou brava quando soube que vacinei meus filhos”.
Perguntei se gostava da cidade e se tinha vontade de voltar à vida tribal. “A vida na tribo era muito melhor... tive que vir à cidade aos dez anos para começar a vender nos trilhos. Foi assim que aprendi a vender. Lembro de nós enfileiradas com bacias na cabeça esperando os passageiros. Agora eu não vou muito lá, ainda mais com o vírus. Mas às vezes me mandam alguns vídeos no celular e sinto muitas saudades daquelas velhinhas cozinhando”.
*Danilo Lemos é estudante de Gastronomia.