Talibã e a ingerência externa no Afeganistão
As cenas impactantes dos milhares de cidadãos que tentaram deixar o Afeganistão pelo aeroporto de Cabul nas últimas semanas dominaram os veículos de comunicação. O colapso do governo nacional e a (re)tomada do poder pelo Talibã foram antecedidos pela retirada das tropas norte-americanas depois de duas décadas de ocupação no país, deixando para trás evidências não apenas da onerosa tragédia humana da “Guerra ao Terror”, mas, sobretudo, do seu mais do que comprovado insucesso, seja na esfera política, econômica ou militar.
As discussões sobre a retirada estadunidense iniciaram no governo de Barack Obama, cujo questionamento girava em torno de aumentar o efetivo armado e concluir os objetivos em solo afegão ou encerrar a guerra de vez. Estendidas à administração republicana de Trump, foi nela que se concretizaram negociações feitas diretamente com o Talibã, iniciadas em 2018 e concluídas com a assinatura do Acordo de Doha, em fevereiro de 2020, no Catar. O acordo não teve a participação do governo afegão, uma das exigências feitas pelos talibãs. As negociações previam um cronograma para a saída dos Estados Unidos, mas não houve, em contrapartida, qualquer salvaguarda de que as demandas dos EUA seriam atendidas no futuro próximo. Fato é que o reconhecimento e a legitimidade política, tão enfatizados pela mídia mainstream após o recente diálogo entre Talibã e China, foram conferidos por Trump ao grupo armado muito antes de ele ir a Pequim. Hoje Biden apenas finaliza, às pressas, o que foi iniciado há mais de um ano.
Em termos político-estratégicos, há que se considerarem as exigências contemporâneas que a conjuntura poderá impor ao Talibã. Entre elas está a necessidade de estabelecer um diálogo com os demais Estados, seja com o objetivo de evitar o isolamento do final do século XX, seja para assegurar o fluxo de ajuda externa, fator preponderante para a estabilização do país.
Nesse contexto, surge outro jogo de forças regional na Ásia Central. Com um forte protagonismo de China e Rússia, seguidos dos demais membros da Organização para Cooperação de Xangai, tais países demonstram ser favoráveis ao reconhecimento do novo regime e o estabelecimento de relações pragmáticas. A China vem realizando grandes obras de infraestrutura no Paquistão, Irã e outras nações asiáticas, essencialmente vinculadas à Belt and Road Initiative (BRI), ou sua Nova Rota da Seda, o que a coloca na posição de principal potência do continente asiático.
Para além dos prognósticos ingênuos de um novo Talibã moderado, que agora fornece um discurso mais palatável para consumo externo, a verdade, todavia, é que a realidade doméstica afegã possivelmente seguirá as mesmas diretrizes do final dos anos 1990, período da primeira chegada ao poder pelo grupo. Isso inclui a imposição da Sharia, lei islâmica, a toda a população, com efeitos especialmente danosos para as mulheres.
Como sugere o título de uma das obras do colombiano Gabriel García Márquez, “Crônica de uma Morte Anunciada”, não se pode dizer que o resultado da ingerência externa seria imprevisível no caso afegão. País altamente fragmentado, com vínculos de lealdade locais e historicamente alvo de disputas por conta de sua posição geoestratégica, o que se pode dizer é que o Afeganistão nunca contou com um Estado nacional centralizado e coeso.
O país sempre esteve suscetível aos reveses de suas próprias forças regionais e aos interesses políticos de quem as conduzia.
Ademais, todas as suas tentativas de modernização foram frustradas. Desde a monarquia secular de Mohammed Zahir Shah, passando pelo período da “Nova Democracia” e a República de 1973, até o governo marxista do Partido Democrático do Povo Afegão (PDPA), em 1978.
No caso do último, a entrevista concedida em 1998 por Brzezinski, ex-Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter, deixava bem claro o caminho seguido. Sob a ótica da Guerra Fria, o objetivo era, segundo ele, “dar à União Soviética o seu Vietnã”.
A narrativa convencional de difusão dos ideais democráticos cai por terra ao ser confrontada com a realidade do apoio dos EUA concedido aos militantes extremistas com a intenção de provocar a intervenção soviética em 1979, o que radicalizaria a guerra civil.
O apoio aos mujahideen, então chamados de freedom fighters, ou guerreiros da liberdade, teve início seis meses antes de a URSS intervir no país, quando Carter assinou a primeira diretriz de ajuda secreta aos oponentes do regime pró-soviético em Cabul. Essa mesma insurgência seria a base para o Talibã, agora considerado um grupo terrorista, que governaria o Afeganistão pela primeira vez entre 1996 e 2001, até ser deposto pelas forças estadunidenses.
Passados vinte anos de conflito e com o Talibã novamente assumindo o controle sobre o Afeganistão, ficam nítidos os fracassos do modelo e das políticas ocidentais de state-building – a tentativa de construção de Estados-nação de fora para dentro. Sobretudo quando o Estado em si assume formas de organização diferentes dos modelos ocidentais, como é e sempre foi o exemplo do Afeganistão, mas também nos casos de Iraque, Síria e Líbia. Fica em aberto a questão de saber se a saída norte-americana gerará um caos que afetará negativamente a China ou dará a ela a oportunidade de gerar estabilidade na Ásia Central.
(*) Gabriela Ruchel é mestranda pelo PPG em Ciência Política da UFRGS e pesquisadora do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT).