Vende-se a alma do Brasil
O Museu da Inconfidência ocupa o coração da cidade de Ouro Preto. Guarda-se ali, numa sala em formato de Panteão, as ossadas dos inconfidentes, aclamados heróis que lutaram pela independência do Brasil. Seja por um livro de educação básica ou uma minissérie televisiva, todos nós brasileiros sabemos quem foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que rememoramos todo 21 de abril, data que marca a sua execução pela coroa portuguesa. Sabemos também da importância da cidade de Ouro Preto, pelo seu valor histórico relacionado ao ciclo do ouro, mas também pela excepcionalidade urbana e paisagística, laureada por trabalhos de um dos maiores mestres da nossa cultura, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Tiradentes, Ouro Preto e Aleijadinho funcionam assim como se fossem fundamentos da nossa cultura. Rememorar, revisitar, questionar e reposicionar esses valores são deveres cotidianos da nossa sociedade. Mas não é possível passar sem eles, pois são constitutivos da nossa essência. Sem eles, ficaríamos como que desalmados.
Pode parecer que a importância do mártir da Inconfidência Mineira, a excepcionalidade da cidade que é patrimônio histórico mundial da Unesco, ou o valor do escultor mestiço impactado por sérios problemas de saúde estiveram sempre ali à nossa disposição. Hoje, eles são tão constitutivos da nossa cultura que alguém poderia supor que se trata de algo dado, que nasceu como que espontâneo, natural de forma límpida e cristalina. O fato é que estes valores tão elementares a nós estão intimamente ligados ao governo de Getúlio Vargas e mais especificamente ao trabalho do então Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema.
Gustavo Capanema foi como que uma ponta de lança para a estruturação dos valores culturais compartilhados nacionalmente. Foi no Brasil dos anos 1930, quando comandava o Ministério, que Ouro Preto ganhou as feições que hoje conhecemos, que Aleijadinho ganhou notoriedade nacional, que foi criado o Museu da Inconfidência e que as ossadas de alguns dos inconfidentes foram repatriadas pelo governo brasileiro, formando o Panteão da nossa liberdade. A política implementada por Capanema contribuiu também em dezenas de outros campos, encontrando a música de Heitor Villa-Lobos, a pintura de Candido Portinari e Tarsila do Amaral, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, a literatura de Graciliano Ramos, a interpretação da nossa sociedade por Gilberto Freyre, a fotografia de Marcel Gautherot, e tantos outros nomes maiores da cultura brasileira. Não é por menos que o nome de Capanema tenha sido escolhido para batizar, logo na inauguração, o edifício público que receberia o novo ministério: o Edifício Gustavo Capanema ou Palácio Capanema, monumento nacional. E por que isso nos importa?
O Edifício Gustavo Capanema foi posto à venda pelo Governo Federal, na última semana. O edifício icônico, projetado por arquitetos como Lucio Costa e Oscar Niemeyer, com um jardim de Roberto Burle Marx, azulejos de Candido Portinari, pintura de Alberto Guignard e escultura de Bruno Giorgi, tudo isso está à venda. E é preciso ter clareza de que o que está à venda não são apenas alguns milhares de valiosos metros quadrados, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Como também não está somente à venda alguns dos mais prestigiosos trabalhos de nossos mestres da arquitetura, escultura, pintura ou paisagismo. Isto não é pouco. Mas o que foi posto à venda pelo Governo Federal foi a nossa matriz cultural, a essência do que une os brasileiros. É Tiradentes, Ouro Preto e Aleijadinho que estão à venda, simbolicamente, pois ficariam assim como que moribundos desterrados sem o ministro Capanema, cristalizado no palácio público que leva o seu nome.
Se não bastasse a afronta à essência dos brasileiros, a transação imobiliária é tão descabida que resvala em dois aspectos legais. O primeiro deles diz respeito ao fato de que o Palácio Capanema é um edifício tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – o Iphan. Em sendo um bem tombado, deve-se observar a legislação que rege este monumento nacional. O Decreto-Lei nº25, que regulamente as atividades do IPHAN, destaca em seu artigo 11º o seguinte: “As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.” A proposta do Governo Federal de vender o Palácio Capanema é, portanto, um ato ilegal pelo Decreto-Lei nº25, um decreto do próprio Governo Federal.
Um segundo aspecto refere-se ao Arquivo Noronha Santos, que constitui o acervo do próprio Iphan, que ocupa alguns dos andares do Palácio Capanema. Em 2002, este arquivo foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, o Inepac, tornando o Arquivo uma estrutura atrelada ao seu local de origem. Segundo o Processo Inepac – E 18/001681/2002, que tombou o Arquivo Noronha Santos em conjunto com outros dez acervos da cidade, buscava-se “… garantir com tal ato a permanência desses acervos e bibliotecas no seu lugar de origem, onde foram produzidos e acumulados.”. Com este processo, o Arquivo Noronha Santos, o Arquivo do Iphan, foi tombado e atrelado ao seu local de origem: o Palácio Capanema. Esta vinculação é muito valiosa, pois a documentação que estrutura e fundamenta os processos legais de tombamento do patrimônio cultural brasileiro passou a estar associada ao edifício, que é símbolo da própria cultura. O Palácio Capanema é uma máquina de cultura.
Assim, como numa amálgama, o Palácio Capanema se vinculou definitivamente ao arquivo, que fundamenta o mais alto valor da nossa cultura. Se não bastasse o edifício ser talvez a mais valiosa joia da arquitetura brasileira, ele passou a carregar definitivamente em seu interior as provas legais, jurídicas e históricas da nossa cultura. Como seria possível, então, vender o edifício sem desestruturar essa amálgama? Sem desarranjar a nossa própria sociedade?
A proposta de venda do Palácio Capanema pelo governo de Jair Bolsonaro não é, portanto, apenas ilegal. Ela é um atentado a todos nós, pois resvala em valores compartilhados, comungados. Valores que chegam a ser banais de tão essenciais à nossa constituição enquanto sociedade. Valores que precisam estar ancorados naquilo que os representa, ainda que para serem reeditados, reavaliados, esquecidos, rememorados. É a nossa autonomia, independência e liberdade – como aquela almejada pelos Inconfidentes – que está em jogo nesse novo disparate do Governo Federal. É a nossa alma que foi posta à venda.
(*) Eduardo Augusto Costa é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.