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Reportagens Especiais

Guerra que invadiu MS e dizimou o vizinho Paraguai completa hoje 160 anos

Em 1864, os tempos eram de indefinições, conflitos e incertezas sobre as fronteiras

Por Aline dos Santos | 27/12/2024 12:29
Ilustração mostra acampamento de militares brasileiros durante a Guerra do Paraguai. (Foto: Domínio Público)
Ilustração mostra acampamento de militares brasileiros durante a Guerra do Paraguai. (Foto: Domínio Público)

Longa, cara e letal, a Guerra do Paraguai teve início há exatos 160 anos. Passadas décadas,  houve revisão de mitos, como de que foi financiada pela Inglaterra para sufocar a industrialização do país vizinho, mas com a certeza de que ter sido o mais profundo conflito envolvendo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Esse último foi dizimado, enquanto que a guerra (1864 a 1870) deixou suas marcas por Mato Grosso do Sul.

RESUMO

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A Guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, foi um conflito devastador que envolveu Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Apesar de mitos sobre financiamento inglês para sufocar a industrialização paraguaia serem refutados por historiadores, a guerra dizimou a população paraguaia e deixou profundas marcas em Mato Grosso do Sul, com ocupações paraguaias em Corumbá e outras regiões. O conflito, resultado de disputas territoriais e desconfianças mútuas, prolongou-se pela resistência paraguaia e pela complexidade do terreno. A violência extrema atingiu ambos os lados, especialmente as mulheres, e resultou em significativa perda populacional no Paraguai, influenciando até hoje a cultura e a demografia de Mato Grosso do Sul.

“Não há documento que demonstre o envolvimento da Inglaterra, não era interesse dela. O Paraguai vivia ensaio inicial de desenvolvimento econômico. O Brasil, por exemplo, tinha mais indústria, produção. A Argentina também. Pesquisadores sérios das universidades não concordam com essa ideia. Antes da guerra, a Inglaterra estava ajudando o Paraguai”, afirma Paulo Roberto Cimó Queiroz, professor de História da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).

Há 160 anos, os tempos eram de indefinições, conflitos e incertezas sobre as fronteiras, além das disputas internas. Espremido entre grandes países, o Paraguai temia ser invadido pelo Brasil, apesar de o império nunca ter demonstrado essa predisposição. O receio paraguaio se intensificou quando o Brasil invadiu o Uruguai para proteger interesses de pecuaristas brasileiros.

Imagem antiga mostra o Exército brasileiro na Guerra do Paraguai (Foto: Domínio Público)
Imagem antiga mostra o Exército brasileiro na Guerra do Paraguai (Foto: Domínio Público)

“Naquele contexto de desconfiança e incerteza, qualquer fagulha acende uma faísca. Foi um conjunto de eventos que acabaram desaguando na guerra que ninguém queria, mas todo mundo teve que enfrentar. O Solano não tinha informação suficiente e achava que o Brasil tinha interesse em anexar o Paraguai”. Francisco Solano López era o presidente paraguaio.

O país vizinho chegou a enviar ofício ao Brasil, alertando que a invasão ao Uruguai seria motivo para uma guerra. Mas a resposta brasileira foi ignorar a manifestação. “O Paraguai não era um risco para o Brasil, que nunca imaginou que fossem atacar o Mato Grosso”. A guerra passou por território que hoje é MS, mas há 160 anos ficava em Mato Grosso.

O Paraguai declarou a guerra em dezembro de 1864. Mas, de acordo com Paulo Cimó, o Brasil considera que o estopim foi em novembro daquele ano. Na ocasião, em Assunção (capital do país vizinho), o Paraguai apreendeu navio brasileiro que seguia para o Mato Grosso, levando o novo governante da província. O navio acabou incorporado à frota paraguaia, sendo usado na guerra.

Forte Coimbra, edificação às margens do Rio Paraguai. (Foto: Anderson Gallo/Arquivo Diário Corumbaense)
Forte Coimbra, edificação às margens do Rio Paraguai. (Foto: Anderson Gallo/Arquivo Diário Corumbaense)

A guerra em MS – No dia 27 de dezembro de 1864, aconteceu a invasão ao Forte Coimbra, em Corumbá, pelas tropas paraguaias. A ocupação ainda abrangeu locais onde fica Coxim (um povoado), Nioaque e Miranda. Eram territórios vastos e com pouca defesa, o que facilitou o progresso das tropas paraguaias.

“Tomaram essas quatro e o Forte Coimbra. Mais uma demonstração de que o Império não se preocupava muito com o Paraguai. Enquanto o Brasil tinha algumas centenas de combatentes, o ataque foi com milhares de pessoas”, diz Cimó.

A ocupação em Corumbá durou três anos, período em que a região ficou sob domínio paraguaio. Nesse tempo, os brasileiros chegaram a retomar a cidade às margens do Rio Paraguai, mas abandonaram Corumbá por conta da varíola. As tropas paraguaias só deixaram Mato Grosso do Sul quando não tinha mais efetivo para defender Assunção.

Para Paulo Cimó, a guerra que ninguém queria se alongou porque o Paraguai soube se defender muito bem, principalmente na Fortaleza de Humaitá, que protegia Assunção. A edificação, construída com apoio de técnicos brasileiros em tempos de paz, levou muito tempo para ser tomada.

As especificidades do território paraguaio também retardaram o avanço das tropas. “A guerra acabou se estendendo porque realmente as condições eram difíceis para os inimigos do Paraguai. E Solano López conseguiu convencer que tinham que lutar até quase o último homem”.

Toda sorte de violência – A guerra foi marcada por violência de ambos os países. Como sempre, bem cruel para as mulheres. Onde “vencedores” simplesmente se adonavam delas.

“Houve toda sorte de violência. Isso aconteceu de lado a lado, foi uma prática muito comum”, afirma o professor aposentado da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), historiador Paulo Esselin. Um exemplo foi quando o comandante da tropa paraguaia, em Corumbá, chamou comerciantes locais para conversa. Dentre eles, estavam pai e filha. Ela foi obrigada a ficar, enquanto os demais foram liberados para voltar ao trabalho.

Em território brasileiro, as tropas paraguaias avançaram para os atuais Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. Mas, com maior efetivo militar, a invasão foi sufocada pelos gaúchos em dois meses. Por aqui, as primeiras defesas fugiram, alegando a superioridade numérica dos invasores.

Retrato de Francisco Solano López, presidente do Paraguai. (Foto: Reprodução)
Retrato de Francisco Solano López, presidente do Paraguai. (Foto: Reprodução)

Foi assim em Forte Coimbra, às margens no Rio Paraguai. A coluna fluvial paraguaia tinha 4.200 homens. No forte, eram cerca de 180 pessoas, sendo 150 homens. Nos dois primeiros dias de ataque, um brasileiro foi morto.

Conforme Esselin, na madrugada de 29 de dezembro, o coronel brasileiro convidou todos os oficiais para se retirarem. A justificativa foi a diferença de contingente para os combates. “E resolveram pela fuga, indo para Corumbá”.

Nisso, as tropas paraguaias avançaram e também chegaram a Corumbá. Lá, a decisão da defesa também foi partir, desta vez para Cuiabá, capital da província do Mato Grosso. “Abandonaram a população à própria sorte”, afirma o pesquisador da UFMS. Segunda cidade mais importante do então Mato Grosso, Corumbá ficou sitiada e perdeu o intenso fluxo portuário.

Por terra, a coluna paraguaia atravessou o Rio Apa em Bela Vista. A ocupação se estendeu até Coxim.

Encenação da Retirada da Laguna envolve a comunidade, o Exército e visitantes. (Foto: Chico Ribeiro)
Encenação da Retirada da Laguna envolve a comunidade, o Exército e visitantes. (Foto: Chico Ribeiro)

Retirada da Laguna – Um dos episódios que marcou a guerra em Mato Grosso do Sul foi a “Retirada da Laguna”, registrada no livro de Visconde de Taunay.

Já no desenrolar do conflito armado, em 1867, o exército brasileiro enviou para a frente de combate um efetivo de cerca de três mil homens, liderados pelo coronel Carlos de Morais Camisão, que decidiu adentrar o território paraguaio até alcançar Laguna (nas imediações da cidade de Bela Vista).

As tropas da Retirada da Laguna saíram do Rio de Janeiro em 1865, passaram por São Paulo e Minas Gerais. Em abril de 1866, estavam em Coxim, de lá seguiram para Miranda. No dia 21 de abril de 1867, liderada por Carlos Camisão, a tropa cruzou o Rio Apa rumo à fazenda Laguna, no Paraguai.

Com a quantidade de soldados reduzida, devido à fome, doenças, deserções, o exército imperial foi surpreendido pela quantidade de soldados no solo paraguaio. Teve início a retirada das tropas brasileiras. De aproximadamente 3 mil homens que vieram para o sul do então Mato Grosso, em torno de 700 voltaram da retirada e chegaram à Porto Canuto (atual município de Aquidauana).

De 1864 a 1870, o Brasil precisou empenhar 139 mil soldados e gastou, nesse período, o orçamento de 11 anos.

Explosão da igreja em Nioaque, um dos momentos da encenação da Retirada da Laguna. (Chico Ribeiro)
Explosão da igreja em Nioaque, um dos momentos da encenação da Retirada da Laguna. (Chico Ribeiro)

Paraguai, um vizinho dizimado – Antes da guerra, o Paraguai era essencialmente agrícola, mas buscava diversificar a economia com exportações. Sem acesso direto ao mar, dependia de uma estrada fluvial que englobava os rios Paraguai, Paraná e Prata até chegar ao Oceano Atlântico.

“Mas tinha dificuldade de sair para o Rio da Prata porque o governo da Argentina colocava obstáculos. A Argentina, sim, queria anexar o Paraguai, como parte de um grande país, sucessor da antiga colônia espanhola”, afirma Paulo Cimó.

Passada a guerra, o Paraguai teve a população masculina dizimada. Durante o conflito, crianças tiveram que lutar.

“Mais de 80% dos homens morreram. Após não ter mais homens do exército, o ditador Solano López obriga crianças e idosos a lutarem. Tem uma batalha famosa onde morrem muitas crianças, a Acosta Ñu. Inclusive, o dia das crianças no Paraguai é em 16 de agosto devido a essa batalha”, afirma o professor Wagner Cordeiro Chagas, mestre em história pela UFGD.

Os relatos dão conta de um massacre na cidade de Eusebio Ayala, a 250 km de Ciudad del Este, atual fronteira com o Paraná.

A perda populacional faz ser voz corrente de que até a poligamia (um homem com mais de uma esposa) foi autorizada no Paraguai, mas sem confirmação documental. O país perdeu metade da população, com estimativas entre 250 mil a 300 mil mortes.

“Todos os viajantes que passavam pelo Paraguai relatam que as atividades que em outros países eram desenvolvidas pelos homens, ali eram pelas mulheres. A perda masculina foi tamanha que o instituto da amante surgiu no Paraguai”, diz Paulo Esselin.

Detalhe da bandeira do Paraguai em Isla Margarita, na fronteira com Porto Murtinho. (Foto: Henrique Kawaminami)
Detalhe da bandeira do Paraguai em Isla Margarita, na fronteira com Porto Murtinho. (Foto: Henrique Kawaminami)

Imigração pelas guerras – Além da Guerra do Paraguai, Mato Grosso do Sul foi destino da imigração paraguaia num movimento determinado por conflitos mais recentes. Como a Guerra do Chaco (1932 a 1935) e instabilidades políticas na década de 50.

“Houve imigração para o território de Mato Grosso do Sul por consequência de uma instabilidade política no Paraguai. Em 1947, acontece uma guerra civil no Paraguai e muitos, principalmente de Concepción, imigraram para onde hoje é Mato Grosso do Sul e sua atual Capital. Vieram famílias inteiras. O que digo sempre é que entre 50% e 60% da população de Mato Grosso do Sul têm ascendência paraguaia ou são paraguaios”, diz Ricardo Zelada, presidente da Associação Colônia Paraguaia de Campo Grande.

A verdade - Futuramente, a temática da guerra, também chamada de Tríplice Aliança, deveria ser abordada em palestras, com convite a historiadores brasileiros e paraguaios, sugere Zelada.

“Existem versões, existem preconceitos em relação à Guerra do Paraguai, então seria interessante realmente convocar historiadores paraguaios e brasileiros para a gente saber dessa história, da forma como aconteceu. Gostaríamos de fazer algumas palestras”, afirma.

Além da população, ele lembra que Mato Grosso do Sul é marcado pela cultura paraguaia. “Os paraguaios trouxeram muitos costumes, principalmente o tereré. Trouxeram a música, o próprio chamamé correntino. A questão da culinária, a chipa, a sopa paraguaia. Eu falo que a cultura paraguaia faz parte da cultura sul-mato-grossense”.

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