Milícia executou próprios integrantes e com requintes de crueldade
Um dos envolvidos em execução foi "apagado" pelo grupo de extermínio e teve as pernas mutiladas
“Quem não silencia, é silenciado”. A máxima citada quando o assunto é o famoso "código de honra", resume um pouco o teor dos autos da Operação Omertá. Basta ler as conclusões do trabalho investigativo sobre grupo de extermínio identificado em Campo Grande para observar que o medo é presente o tempo todo, não só para os alvos, mas entre os integrantes da milícia armada, à qual são atribuídos pelo menos oito execuções nos últimos dez anos. A forma como o grupo agia explica tamanho terror.
Entre as mortes dentro da própria quadrilha, uma é na vida real comparável ao que foi no cinema a cabeça de cavalo deixada na cama de personagem de “O Poderoso Chefão”, filme sobre a máfia italiana cultuado há quase meio século. Em agosto de 2013, Rafael Leonardo dos Santos, de 29 anos - contratado para pilotar motocicleta na qual o pistoleiro José Moreira Freires atirou e matou o delegado aposentado Paulo Magalhães, de 57 anos - foi assassinado e teve o corpo mutilado. Cortaram as pernas e a cabeça e abandonaram só o tronco, carbonizado, no lixão de Campo Grande.
Foi queima de arquivo, apontaram as investigações da época. Mas para os responsáveis pela Operação Omertà, foi também recado para demonstrar os riscos a quem quebra a lei do silêncio imposta aos integrantes do grupo de extermínio. A apuração indica que Rafael, jovem dos três envolvidos no crime, era considerado o “elo” mais fraco, além de ter cometido o erro de comprar, logo depois do crime, veículo de valor acima de sua capacidade financeira aparente.
Mais um indício da extrema violência aplicada aos desafetos e ex-funcionários, argumenta o Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado) no pedido de prisão de 23 pessoas feito à Justiça, estava junto com o arsenal apreendido em maio deste ano, com o ex-guarda municipal Marcelo Rios. Foi encontrado um arreiador de gado, instrumento originalmente usado na pecuária, para dar choques elétricos no gado. Nas mãos dos integrantes da milícia, diz a investigação, o equipamento era usado para tortura.
Também foram localizados dois outros itens do tipo na casa de José Moreira Freires, indicado junto com Juanil Miranda Lima, como os responsáveis pelo objetivo final da milícia, executar os inimigos da família Name, considerada comandante da organização.
Clima de medo – Não apenas a quebra do silêncio era encarada como risco de vida, observa material levantado. Trechos do texto de mais de 1,3 mil páginas, que baseia os pedidos de prisão dos envolvidos, deixam claro: havia muito medo de errar e, quando isso aconteceu, o sentimento virou pavor.
Isso fica nítido em relação ao ex-guarda civil Marcelo Rios, 42 anos, a quem cabia, conforme o Gaeco, a tarefa de intermediar as mortes encomendadas. Primeiro, foi em quanto à execução, por engano, do estudante Matheus Coutinho Xavier, de 20 anos, em abril deste ano. O alvo era o pai do rapaz, o capitão reformado da Polícia Militar Paulo Roberto Teixeira Xavier, considerado desafeto dos “patrões” do esquema criminoso.
Em maio, mais um problema para Rios, há quatro anos trabalhando com os Name, de acordo com a peça investigatória. No dia 19, ele foi preso com armas que, apontam o Garras (Delegacia Especializada de Repressão a Roubo a Banco, Assalto e Sequestro) e o Gaeco, deveriam ser entregues diretamente a Jamil Name, tido como o chefe da “Orcrim”, abreviação de organização criminosa no jargão jurídico.
Nas inúmeras escutas transcritas, chama atenção diálogo no qual Rios afirma categoricamente: “O velho quer me empurrar”, ao revelar temor de ser alvo de desconfiança do empresário. Empurrar é matar, na gíria policialesca.
Testemunha-chave, a mulher do ex-guarda civil municipal sugere nervosismo muito acentuado dele nos períodos próximos a assassinatos. De acordo as revelações dela, o marido chegou a ficar sem dormir, nem comer, de tão abalado.
Em outra situação, o investigado, fala do medo de que sua cabeça fosse “rolar”. Quando houve o assassinato de Marcel Hernandes Colombo, o "Playboy da Mansão", atribuído ao grupo criminoso, a esposa de Marcelo Rios contou em depoimento que ele só confirmou a execução aos chefes a quando leu a notícia em jornais.
Em outro trechos da peça processual, aparecem mais funcionários da família Name citando receios. Guardas municipais que atuvam como seguranças também faziam transporte de integrantes da família e apresentavam temor de qualquer imprevisto, como por exemplo em ocasião na qual um dos filhos de Jamil Name Filho, de 12 anos, não foi localizado rapidamente no local combinado.
Frase de efeito – Em 18 de abril do ano passado, segundo consta do texto pedindo as prisões dos envolvidos, Name Filho, 42, também chamado de “Jamilzinho” e “Guri”, travou diálogo com a ex-esposa no qual demonstra preocupação com algum acontecimento e fala em iniciar “a maior matança da história de Mato Grosso do Sul”.
Em conversa de Whatsapp, Jamilzinho afirma ter recebido informação desagradável. Nessa conversa, ele sentencia que “tem medo quem é caçado, não sou eu. A matilha é minha. Não morro fácil”, está transcrito na peça processual do Gaeco.
Execuções em série - A partir de junho de 2018, ocorreram quatro mortes colocadas na conta da milícia armada. Além de Marcel Colombo e de Matheus Coutinho, a lista tem o chefe de segurança da Assembleia Legislativa, o policial militar Ilson Martins Figueiredo, 62 anos, e Orlando da Silva Fernandes, o “Bomba”, 41 anos, ex-segurança do traficante Jorge Rafaat, executado em 2016, em Ponta Porã.
Todos os elementos coletados, para o Gaeco, comprovam que o grupo age com “audácia, destemor e altíssima periculosidade”. A “Omertà” identificada pelos investigadores impõe dificuldades ao trabalho policial, segundo alegam. Nessa investigação, por exemplo, há relatos de ameaças às testemunhas, inclusive com mudança de versões.
O documento cita que, durante anos e anos, a Polícia Civil não conseguiu chegar aos mandantes das execuções. Afirma, ainda, que o Garras pediu apoio ao Gaeco justamente para o trabalho policial conseguir se aprofundar.
Ainda assim, está registrado na manifestação à justiça solicitando as prisões e realizações de buscas, que só policiais topam depor, e ainda assim, apenas sobre o elo final, os executores, sem chegar aos responsáveis pelo “mando”. A morte de Rafael Leonardo, citado no começo do texto, nunca foi esclarecida, apesar das convicções de queimada de arquivo. Diante do medo, alegam os promotores responsáveis pela peça, o “cidadão de bem se sente constrangido” e a opção da maioria é a lei do silêncio.