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Cidades

Responsável por autópsia de Rafaat, legista vê cena de filme na vida real

Em janeiro, ele atuou em três casos de homicídios e a cada mês é o campeão nacional de “produtividade”

Aline dos Santos | 27/01/2020 09:43
Marcos Prietto Vera é medico forense em Pedro Juan Caballero, que faz fronteira com Ponta Porã. (Foto: Marcos Maluf)
Marcos Prietto Vera é medico forense em Pedro Juan Caballero, que faz fronteira com Ponta Porã. (Foto: Marcos Maluf)

No comparativo de produção com os colegas em todo o Paraguai, o médico forense Marcos Prietto Vera sempre é o campeão de atestados de óbito por mês. A explicação é geográfica: ele trabalha como legista em Pedro Juan Caballero, a cidade paraguaia na fronteira com Ponta Porã.

Por lá, o mais comum é morte a “cano curto”, mas, quando o assassinato vem mandar recado, a fronteira é tomada por cenas de barbárie: corpos esquartejados, torturados até a asfixia em saco plástico ou exatos 14 disparos com arma de grosso calibre entre o tórax e o crânio de um homem.

Seja do lado do Brasil ou do Paraguai, a munição utilizada ajuda a contar a motivação de um assassinato: Fuzilamentos no meio da rua são mensageiros de que há nova liderança na fronteira. Revólver ou pistola, armas de cano curto, ficam para o “baixo clero”.

Na profissão de médico forense desde 2014, Prietto conta que o caso mais emblemático que atendeu foi o de Jorge Rafaat Toumani. A execução com uso de armamento antiaéreo, analisada como a maior demonstração da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) na fronteira, foi em 15 de junho de 2016. Mas com efeitos que perduram até hoje. A emboscada do narcotraficante foi parar no Atlas da Violência do Brasil por ser um dos principais fatores da explosão de execuções.

De volta a 15 de junho de 2016, o médico legista estava de plantão quando Rafaat sofreu atentado ao passar pela via Tenente Herrero, conhecida por ser a rua do cemitério de Pedro Juan. Do ponto de vista da perícia, a “sorte” é que o poder de destruição das munições foi amortecido pela blindagem do veículo onde estava Rafaat. Caso contrário, o crânio teria desaparecido. Ainda assim foram 14 disparos do tórax até a cabeça.

No estilo de mandar recado para os inimigos, o legista afirma que há outros casos que remetem a cenas cinematográficas. “Saco na cabeça eu só tinha visto no filme Tropa de Elite. A vida do legista é cada dia com coisa nova”, diz. Na simbologia da violência na fronteira, mãos cortadas, por exemplo, querem dizer que a vítima mexeu onde não deveria.

Em Pedro Juan Caballero, são três médicos forenses, sendo a média de dez dias de plantão a cada mês. Em janeiro, o plantão de Prietto já conta com três casos de homicídios. Em junho do ano passado, foram oito assassinatos em dez dias de plantão.

Na semana passada, o último homicídio que atendeu foi na noite de 21 de janeiro, um dia antes da entrevista ao Campo Grande News. Um jovem de 18 anos foi morto com único tiro de revólver. Além da violência, outra marca do trabalho da perícia do lado paraguaio é a falta de materiais básicos. Às vezes, não tem nem luva para trabalhar. Na quarta-feira, ele precisou comprar material para recolher secreção num caso de violência sexual contra criança.

O sol ilumina a fachada desbotada do IML de Ponta Porã, cidade com alta taxa de homicídio. (Foto: Marcos Maluf)
O sol ilumina a fachada desbotada do IML de Ponta Porã, cidade com alta taxa de homicídio. (Foto: Marcos Maluf)

A pressa da morte – Em Pedro Juan Caballero, não há IML (Instituto Médico Legal). A polícia chega ao local do crime e isola a área. Na sequência, o caso passa para o promotor, que será responsável pela investigação. Cabe ao profissional acionar o médico forense. O cadáver pode ser levado para três tipos de locais: o Hospital Regional, uma das duas funerárias da cidade ou para o laboratório de universidades de Medicina.

As famílias que precisam apresentar atestado de óbito no cartório em 24 horas por isso, em geral, pedem que o corpo seja levado para a funerária. O pior local para trabalhar é o Hospital Regional, a má fama atravessa a fronteira, com o comentário que no Paraguai o corpo fica na “pedra” do hospital.

Segundo Marcos Prietto, a sala é pequena, sem iluminação adequada e suja. Corpos sem identificação ficam nas universidades, se no prazo de 20 dias nenhum parente aparecer, o cadáver fica com a instituição de ensino e é utilizado nas aulas de anatomia humana.

Outra questão é que só é feita necropsia se houver dúvida sobre a causa da morte. Se uma pessoa leva um tiro no peito, o laudo é de que morreu por choque hipovolêmico (perda intensa de líquidos). Quando há suspeita sobre a causa do óbito ou é preciso fazer exame de DNA, material ou todo o corpo vai para Assunção, capital do Paraguai, a 447 km de Pedro Juan.

Trabalho técnico – Em Ponta Porã, o IML (Instituto Médico Legal) funciona em um imóvel antigo e pequeno, localizado na Rua Jorge Roberto Salomão. Na fachada, a pintura é descascada, as janelas têm marca de ferrugem e a parede exibe, perto da porta, uma placa da gestão do ex-governador Zeca do PT.

Como o trabalho é em regime de plantão, a equipe é orientada a procurar pelo profissional que está de folga. O médico legista Iberê Pinto Gonçalves atendeu o Campo Grande News em seu consultório. Em casos de ápice da barbárie, como esquartejamentos, a perícia conta com recursos técnicos, como identificação por exame de DNA.

“A gente procura fazer o exame mais técnico possível para saber a causa da morte”, diz. Corpos encontrados do lado brasileiro vão para o IML de Ponta Porã. Na identificação, também são usados elementos como roupas, tatuagens, brincos e cirurgias. De acordo com ele, o IML de Ponta Porã será reformado.

Iberê Gonçalves é médico legista em Ponta Porã. (Foto: Marcos Maluf)
Iberê Gonçalves é médico legista em Ponta Porã. (Foto: Marcos Maluf)

Terra de fronteira - No ano passado, a Polícia Civil registrou 54 homicídios dolosos em Ponta Porã. A taxa foi de 58,4 mortes para cada cem mil habitantes. A ONU (Organizações das Nações Unidas) considera aceitável taxa de até 10. No ano de 2018, Ponta Porã, que tem população de 95.526 pessoas, teve 32 assassinatos.

No mês de dezembro, o jornal paraguaio “Última Hora”, um dos três mais influentes do país vizinho, mostrou 251 assassinatos na Linha Internacional entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã.

Num crime comovente e chocante, uma mãe foi à imprensa para pedir a cabeça do filho, encontrado esquartejado. O adolescente de 14 anos foi sequestrado e assassinado a tiro.

Filho de mãe brasileira e de pai paraguaio, ele desapareceu depois de brigar com outro adolescente no banheiro de uma escola em Pedro Juan Caballero. Por fim, soube-se que a cabeça estava junto aos demais restos mortais, num tambor de plástico no rodoanel de Ponta Porã.

Marco entre Brasil e Paraguai na fronteira de MS. (Foto: Marcos Maluf)
Marco entre Brasil e Paraguai na fronteira de MS. (Foto: Marcos Maluf)
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