Agente e delegado preso por morte debochavam da polícia
Emannuel Contis tinha relação servil com superior hierárquico que vai a júri por morte e de quem foi cúmplice, segundo inquérito
Nem de amigo, nem de colega. Réu por tentar ajudar o delegado Fernando Araújo da Cruz Junior a apagar vestígios de assassinato do qual é acusado, ocorrido em fevereiro de 2019, o agente de polícia judiciária Emmanuel Nicolas Contis Filho mantinha relação servil com o superior hierárquico, indicam as apurações feitas pela Corregedoria da Polícia Civil, que levaram os dois à condição de acusados de crimes. Conversas entre eles revelam a trama para burlar as investigações.
Fernando, de 34 anos, está preso até hoje por homicídio, aguardando julgamento. Contis, 32 anos, responde em liberdade por coação a testemunha e fraude processual e segue defendendo as mesmas teses do delegado sobre o episódio.
Na linguagem popular, Contis atuava, conforme o trabalho policial, como espécie de “capacho” de Fernando Araújo da Cruz Junior. É assim que o dicionário traduz - por metáfora informal - a “pessoa servil e bajuladora, puxa-saco”. No tema em questão, o objetivo era um só: livrar o delegado da responsabilização penal.
O que – Na tarde do dia 23 de fevereiro de 2019, durante festa na Associação dos Ganaderos (criadores de gado) de Puerto Suarez, cidade próxima à fronteira brasileira, o delegado, conforme a acusação, esfaqueou o boliviano Alfredo Rengel Weber, de 48 anos, um dos associados. Ali, acontecia a eleição da presidência da entidade, vencida por Asis Aguilera Petzold, pai da esposa do delegado, Silvia Aguilera. Asis era também prefeito de El Carmen Rivero Tórrez, cidade de seis mil habitantes.
A discussão na qual tudo começou teria relação com o fato de Weber ter cobrado Silvia por dívidas do ex-marido dela, Odacir Santos Correia, traficante preso pela Polícia Federal em 2003, durante a Operação Nevada.
Ferido gravemente, Rengel foi levado para o hospital San Juan de Dios. Lá, a equipe médica achou necessário transferir o paciente para Corumbá, em busca de mais recursos médicos. No caminho, a viatura de socorro foi interceptada por uma camionete escura, já no Brasil. Um “homem alto, branco, forte” abriu o compartimento do paciente e disparou quatro vezes contra ele, com uma arma prateada.
Isso tudo foi assistido pelo motorista, pela irmã, pela filha da vítima e ainda pelo médico socorrista. As características físicas são as de Fernando, a arma bate com uma que ele tinha registrada, assim como o veículo descrito se assemelha ao usado por ele à época, uma S10 preta.
A ambulância sequer veio para o Brasil. Foi percebida a morte do paciente e dada meia volta.
Tá tudo quieto”, celebrou Contis um dia após o assassinato, em 24 de fevereiro, quando não havia notícia nos jornais locais sobre o acontecimento.
“Que sorte, hein doutor”, comemorava o policial.
Para os dois, a situação figuraria como mais uma entre tantas mortes envolvendo grupos rivais de traficantes, já que a vítima havia sido condenada pelo crime no Brasil, na década de 1990.
Bronca ficou toda lá, mas disse que nem acionaram a polícia lá”, acreditava Fernando.
Se alguém perguntar, os caras pegaram ele lá e finalizaram aqui”, completou.
Perguntado sobre como estava e o que fazia naquele momento, revelou despreocupação.
Tõ assistindo filme", disse a autoridade policial sob suspeita de assassinar uma pessoa horas antes.
A calmaria acabou. Logo se espalharam os boatos de que policial brasileiro havia matado um boliviano na estrada. Inquérito foi aberto em Corumbá no dia 24, testemunhas reconheceram Fernando Araújo da Cruz Junior, e a Corregedoria entrou no caso, ouvindo testemunhas e refazendo os passos do dia 23 de fevereiro.
O trabalho revelou que, enquanto a investigação era feita, o delegado e o agente seguiam tentando atrapalhar.
Ambos foram filmados no estabelecimento comercial de uma das testemunhas, no dia seguinte ao depoimento.
É atribuído à dupla o convencimento de outra testemunha-chave, o motorista da ambulância, para desdizer o conteúdo de declarações feitas à Polícia Civil, reconhecendo Fernando como o autor dos disparos contra Alfredo Rengel Weber.
Na imprensa do país vizinho, a informação chegou a sair como denúncia de que policiais brasileiros haviam “raptado” o motorista.
Com as investigações em curso, o veículo do delegado, uma S10 preta, foi identificado como o que interceptou a ambulância. Ao ser ouvido, o investigado disse ter “penhorado” o veículo para comprar material escolar da filha. Não disse com quem.
Também não revelou onde estava o revólver calibre 357, com pintura niquelada, registrado em seu nome.
No meio disso tudo, o delegado dizia ao amigo estar tranquilo sobre o insucesso das apurações.
A Corregedoria está no escuro”, chegou a afirmar Fernando Araújo da Cruz Junior, dez dias antes de ser alvo de operação que o levou à prisão.
A operação da Corregedoria da Polícia Civil teve apoio do Garras (Delegacia Especializada de Repressão a Roubo a Banco, Assaltos e Sequestros) e da DEH (Delegacia Especializada de Repressão a Crimes de Homicídios.
Na madrugada do dia 29 de março, quando foram feitas as prisões, delegado e investigador conversaram até a madrugada sobre rastreadores de veículo.
Antes das 7h, foi deflagrada a ação. Fernando tentou destruir o celular, na frente da equipe que o prendeu em casa, no Centro de Corumbá. A esposa, Silvia Aguilera, protagonizou cenas que chamaram a atenção, chegando a morder um policial responsável pela diligência, depois de sair correndo pela rua com a filha no colo e pedindo carona.
Revelações – Havia motivo para a tentativa de destruir o aparelho. Fernando e Emanuel conversaram, muito, desde a sequência da morte na estrada entre a cidade boliviana de Puerto Suarez e Corumbá.
Eram mensagens e ligações pelo Whatsapp. A Capivara Criminal apurou que no contexto dos diálogos de comentários jocosos sobre a investigação, sugestões sobre como livrar o delegado e muitas conversas sobre o noticiário, além de tentativas de difundir, em termos usados pelos interlocutores “contrainformações”.
Há um diálogo em que falam até em sabotar o trabalho policial.
“Não dá pra implantar um bagulho forte?”, indaga o delegado em certo momento.
Fernando pressionou o policial a conseguir atestado médico falso, de acordo com o que foi levantado. O médico responsável é parente dele.
A ansiedade era tanta a ponto de perguntar quatro vezes sobre o documento, usado para justificar o afastamento do trabalho, quando esteve em Santa Cruz de La Sierra. A ida à cidade, conforme os levantamentos, tem a ver com as tentativas de embaralhar a condução do trabalho policial.
Tudo corre em sigilo. A investigação da Capivara Criminal mostra que no inquérito está descrita tentativa de trocar a munição da arma de Fernando, para que a balística desse negativa.
Também há um diálogo entre Emannuel Contis e o delegado no qual o agente recebe determinação para levar armas para a Bolívia.
Se isso se concretizou, Contis correu o risco de ser preso para cumprir as ordens do superior hierárquico.
Na semana passada, ele rompeu o silêncio sobre o assunto. Deu entrevista em que, assim como a defesa do delegado já fez, questionou o trabalho da Justiça no andamento processual. Confirmou ser amigo do delegado, mas não alguém próximo.
Pelo trabalho feito para dar embasamento às acusações contra os dois policiais, os indícios são contrários ao que ele fala.
Fernando Araújo Cruz Junior aguarda julgamento na 3ª Delegacia de Polícia Civil em Campo Grande. Ter sido provocado por Alfredo Rengel e diz ter agido em legítima defesa durante a festa. Não confessa a autoria dos tiros na rodovia.
Afastado da Corporação desde abril do ano passado, já foi mandado a júri popular e contesta a decisão. Continua recebendo o salário, de R$ 21 mil brutos, R$ 14 mil líquidos.
O agente ficou preso de março a setembro do ano passado. Foi solto e permaneceu afastado da Polícia Civil. Depois, foi transferido de Corumbá para Coxim. O salário dele é em torno de R$ 4 mil.
Do outro lado - O episódio também segue em investigação na Bolívia, onde corre inquérito sobre as facadas em Alfredo Rengel. Existe, ainda, apuração sobre a atuação do ex-coronel Gonçalo Medina, comandante da Felcc (Força Especial Anti-Crime) à época dos fatos.
O ex-militar ficou preso até o mês passado, sob suspeita de envolvimento com o narcotraficante Pedro Montenegro, extraditado para o Brasil em novembro de 2019. Quanto à morte de Alfredo Rengel Weber, recai sobre Medina a suspeita de agir em benefício do delegado brasileiro, sonegando provas.
(*) Marta Ferreira, que assina a coluna “Capivara Criminal”, é jornalista formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), chefe de reportagem no Campo Grande News. Esse espaço semanal divulga informações sobre investigações criminais, seus personagens principais, e seu andamento na Justiça.
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