"Tribunal do crime" revela "Mistério", chefe do PCC nas ruas
Ficha limpa até o ano passado, Eder de Barros Vieira está preso pela execução de "Alemãozinho"
Até 25 de maio de 2019, Eder de Barros Vieira, 38 anos, era cidadão livre, sem qualquer anotação policial em Mato Grosso do Sul. Teoricamente, vivia das vendas em conveniência de sua propriedade em Campo Grande. Naquele dia, foi flagrado com celular furtado, avaliado em R$ 400, que havia sido pego em troca de notebook estimado em R$ 300.
Indiciado por receptação, seguiu sem grandes problemas com a justiça, aguardando andamento do processo, ainda inconcluso. Sem condenação, era ficha limpa.
Passado menos de um ano, em 15 de junho de 2020, Eder estava preso. Dias mais tarde, identificado como uma das lideranças do PCC (Primeiro Comando da Capital) fora do ambiente prisional no Estado. Sua responsabilidade na estrutura da facção, de “geral da rua”, abarcava, entre outras coisas, a palavra final sobre a vida e a morte de quem se desvia do estatuto do “partido” ou se alia a grupos rivais, como o CV (Comando Vermelho).
As autoridades chegaram a “Mistério”, vulgo de Eder entre os irmãos de máfia, quando tentavam localizar Sandro Lucas de Oliveira, 24 anos, desaparecido em 8 de dezembro de 2019. A última aparição foi na “Praça da Caixa d´Água” do Bairro Nova Campo Grande, onde morava.
Havia a suspeita de que “Alemãozinho”, a vítima, era mais um sentenciado à morte pelo “tribunal do crime”, as sessões de justiçamento perpetradas pelo PCC, tornadas comuns nos últimos anos, até com gravação em vídeo de cenas cheias de sangue.
No caso de Sandro Lucas, foi decretada a pena capital por oferecer para a venda drogas do CV, e não do PCC, e ainda declarar serem de qualidade mais apurada. Ele estava em liberdade condicional por crime pelo qual cumpriu pena, justamente o tráfico de entorpecentes.
Caso complicado - Não se desenvolveu de forma rápida a persecução dos culpados por dar cabo à vida de “Alemãozinho”. Ao contrário, a trama era intrincada. A equipe de investigadores, os amigos e conhecidos da vítima desconfiavam do fim trágico, mas o corpo não aparecia.
De passo em passo, entre o sumiço de Sandro e a prisão dos acusados de sequestrar o jovem, torturar e matar a golpes de facão, se passou mais de meio ano.
Para achar os restos mortais, exatos 233 dias.
Foram essenciais para a resolução do caso os depoimentos de adolescente de 17 anos, a “isca” para levar Sandro Lucas aos algozes, e de homem preso em abril do ano passado, ao qual foi contada a história da execução dentro da cadeia. Capturado, ele relatou tudo na delegacia.
Quem manda e quem faz - Está escrito no inquérito da DEH (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Homicídio), assim como na denúncia encaminhada à Justiça, que foram sete envolvidos, um deles o menor de idade, capturado e colocado em regime de internação.
Os outros seis todos são todos adultos integrantes do PCC. Cinco foram presos em junho, e o derradeiro, que indicou onde ocorreu a morte, no fim de julho, levando ao encontro dos restos mortais.
Todos tinham crimes graves no currículo, com exceção de Eder, o “ficha limpa” da história, mas dono da ordem para a “condução” de Sandro Lucas, de acordo com as provas coletadas.
O trabalho policial revela que ele também estava no local onde o jovem foi submetido violência extrema, para depois sangrar até morrer. Primeiro, depois de ser atraído até a praça do bairro Nova Campo Grande no dia 8 de dezembro à noite, a vítima foi levada num carro preto para casebre na Vila Bordon, ao lado de frigorífico da região. Lá, na "cantoneira" usando a linguagem dos bandidos, começou o julgamento paralelo e avesso a todas as leis.
Os criminosos, descrevem os autos, tiveram imprevisto. Alguém foi carregar o celular, houve curto-circuito no barraco na região Oeste da cidade, a luz acabou. Decidiram levar o “réu” até a chácara abandonada no Parque dos Poderes onde Sandro Lucas teve a vida encerrada violentamente.
Ao prestar depoimento na delegacia, acompanhado de dois advogados e com tudo gravado, Eder de Barros Vieira confirmou ser do PCC, citou sua responsabilidade como “geral do cadastro”, cargo que, segundo relatou, cuida de arregimentar novas pessoas para o grupo criminoso.
Contou até as mudanças de vulgo, algo comum na "irmandade". Disse não usar mais “Mistério”, e sim “Deus da Guerra”. No bairro onde mora, a Vila Bordon, é conhecido como “Édão”, nome dado à conveniência de propriedade dele.
Sobre a morte de Sandro Lucas, deu informações, citou o nome dos outros suspeitos presos, mas não assumiu envolvimento direto.
Na frente do juiz, então, negou todas as declarações. Rejeitou até a participação no PCC. Ainda assim, no presídio ocupa a ala dedicada à facção criminosa.
Eder está no EPJFC (Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho), na saída para Três Lagoas. No lugar, existe ala específica para quem é do “partido”. Misturar os detentos é considerado perigo para a segurança de todos no mundo prisional.
Defesa – Os seis denunciados já foram mandados a júri popular pelo assassinato de Sandro Lucas. São acusados de homicídio qualificado, ocultação de cadáver e organização criminosa.
Em trâmite na 2ª Vara do Tribunal do Júri, em Campo Grande, o caso está na fase de apresentação de recursos. O advogado Éverlin da Silva, contratado por Eder, fez isso atacando a investigação.
Na peça, pede a “despronúncia” do cliente, alegando não haver qualquer prova contra ele. O depoimento revelador do detento, afirma, não deveria ser levado em conta.
Para ele, as afirmações foram “possivelmente” fruto de tortura, assim como alega em relação ao seu cliente. Em três exames de corpo de delito feito após a prisão de Eder, não surgiram evidências de lesão, nem ele reclamou sobre isso na fase de inquérito.
Esse apontamento resultou em abertura de apuração pelo Gacep (Grupo de Controle Externo da Atividade Policial), cujo resultado não consta do processo.
Até o laudo pericial indicando como de Sandro Lucas os restos mortais foi questionado na peça defensiva. Everlin Silva afirma não ser o corpo da vítima.
No texto sobre a comparação do DNA da ossada encontrada com o da mãe de “Alemãozinho”, a taxa de compatibilidade é de 99%. Ou seja, para a Polícia Civil, para o MPMS e para magistrado, é sim o corpo do rapaz sentenciado e morto por ordem do Primeiro Comando da Capital.
Quanto ao papel de “Deus da Guerra”, ou “Mistério”, ou só “Édão”, outros depoentes, além de informações coletadas a partir da quebra de sigilo telemático – de celular e contas virtuais - o indicam em posição hierárquica superior, a de “geral da rua”, às vezes definida como "sintonia geral da rua".
No mapa já desenhado da estrutura de poder do PCC, quem está nesse lugar tem contato direto com a cúpula da organização criminosa, tida como a maior em atuação no Brasil há vários anos, no domínio do tráfico de drogas e de armas.
Em Mato Grosso do Sul, está a segunda maior população de faccionados do PCC, mais de seis mil pessoas só na prisão. Só em São Paulo, terra onde nasceu o grupo criminoso, esse número é maior.
(*) Marta Ferreira, que assina a coluna “Capivara Criminal”, é jornalista formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), chefe de reportagem no Campo Grande News. Esse espaço semanal divulga informações sobre investigações criminais, seus personagens principais, e seu andamento na Justiça.
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