Com pandemia e chuva, amarelinha distrai as crianças na casa sem telhado
“A gente até gosta de chuva, mas a nossa infraestrutura não gosta", diz trabalhadora e mãe que vive no Morro do Mandela
O vendaval que correu a 50 quilômetros por hora em várias regiões da cidade no sábado (15) atingiu o Morro do Mandela, favela no conjunto habitacional Izabel Garden em Campo Grande, de forma muito mais intensa. Por ali, falar de isolamento social é redundância, já que seus 600 habitantes vivem longe do acesso ao melhor "oferecido" na cidade. Vídeo gravado no sábado à noite mostra o desespero dos moradores ao se verem no risco de perderem o que conseguem com muita luta nos barracos de lona e madeira.
Nesta segunda-feira (17) contaram o desespero ao Campo Grande News. Entre as telhas que voaram com o temporal e a ajuda que só vem da “comunidade”, os “gatos” de energia também acabam suspenso e com isso fica suspenso o banho quente das crianças.
Por telefone, o secretário de obras da Prefeitura Rudi Fioresi não citou a favela ou bairros específicos ao falar dos reparos nos estragos da chuva em Campo Grande. Disse, no entanto, que as equipes de limpeza trabalham, nesta segunda-feira (17), principalmente no recolhimento de árvores e galhos em “15 ou 20 locais em todas as regiões”.
Disse, também, que as obras de pavimentação, a exemplo das frentes nos bairros Nova Lima e Tijuca, ficam suspensas até que o solo esteja seco.
Nas casinhas das 172 famílias da favela, o isolamento é com relação ao resto da cidade. Ali não há muita chance para distância, já que as casas na área de risco que podem sofrer deslizamentos são uma colada à outra.
O ajudante de pedreiro Odail da Silva, 32 mora na favela há 4 anos e diz que o trabalho “está minguando” com a pandemia. Hoje a renda se mantém graças aos R$ 600 de auxílio, valor ampliado pelo Congresso. A renda mensal é de R$1,2 mil com o auxílio emergencial da esposa. “Quando faz diária de pedreiro tiro R$ 300, mas não é todo dia que tem”, dize ele.
Com o dinheiro que é pouco e os preços lá em cima – a inflação – ele diz comprar o básico e além da comida, “roupa e chinelo para as crianças”. Além dos três filhos, uma menina de 4 e dois meninos de 10 e 13, a esposa, grávida de seis meses, espera o quarto filho.
“A chuva começou por volta das 20h30, destelhou lateral do teto da cozinha, destelhou a varanda, temos um grupo no Whatsapp e na hora que chove os moradores ajudam”, contou o pedreiro.
Ele ganhou telhas para substituir as que o vento levou, menores que as que antes cobriam o barraco de madeira. Os vizinhos também forneceram lonas. A casa tem um quarto, cozinha e um banheiro.
“Quando chove e faz frio é muito pior, graças a deus aqui os vizinhos um ajuda o outro”, conta ele.
Odail vive em uma das áreas mais arriscadas da favela que já no nome indica o risco: morro. O barraco do trabalhador fica na parte elevada.
“Aqui ninguém gosta de chuva, enche de água e é perigoso. Fiz uma estrutura mais alta por conta do calor e graças a Deus quando cai a telha não molha”, detalhou ele.
Diferente de Odail, a auxiliar de serviços gerais Ana Paula Alves de Souza, 34, vive na porção “menos elevada”, próxima de um córrego. Ela trabalha no Proinc (Programa de Inclusão Profissional), que têm recursos enviados pela União à Prefeitura para empregar pessoas de baixa renda em serviços como limpeza e reparos.
Ela vive com a filha de cinco e a filha adolescente, de 17, que mora em barraco ao lado, mas não trabalha. O marido também trabalha em serviços gerais. Ela conta que o vendaval “foi assustador”.
“As telhas saíram do lugar, quebrou a da cozinha. Consegui colocar lona em cima de onde quebrou para poder segurar a água”, comentou a moradora.
Ela disse ter tentado salvar o tanquinho de lavar roupas. “Sempre dá um vazamento aqui e ali”, diz ela, resignada. Atualmente os dois recebem o auxílio emergencial pago com dinheiro da União. “Somando a renda dá R$ 2,6 mil”, conta ela.
“A gente se vira para poder pagar conta. Procuramos pagar a prioridade, e é claro, alimentação, remédio e sempre nem que seja R$ 50 guardado, com criança nunca sabemos o que pode acontecer. Chuva começou por volta 20h30 do sábado, foi assustador”, relatou.
Quando a chuva arranca as telhas, o plástico é a tentativa de formar paredes na casa sem estrutura.
“Nos dias frios colocamos cobertas na parede e chão, estamos perto do córrego, é bem frio. A gente até gosta de chuva, mas a nossa infraestrutura não gosta”, emendou ela.
“Procuramos dar o máximo de conforto para a nossa filha. A gente vive do jeito que a gente pode, nos viramos como podemos”, relatou a trabalhadora.
Para Ana Paula, o jeito “é se adaptar” aos tempos sem a aula presencial da filha pequena. No chão do morro a amarelinha exibe a criatividade para divertir as crianças em tempo de isolamento.
“Sem aula estamos se adaptando, o gasto é maior porque ela come o tempo todo. Fica ansiosa, não pode sair de casa para brincar. Como tivemos casos de covid na favela, evitamos sair. Damos brinquedo, contamos história para distrair”, explicou a mãe.
Sentada e sorridente, Mikaelly Vitória, 5, falou com a reportagem com autorização dos pais. Sente falta da escola, onde a professora representa também afeto e o “papá”. Além, claro, dos amiguinhos.
“Eu sinto mais falta da minha professora Eliana, ela é muito legal, muito boazinha. Ensina abc, canta música, pega papá pra mim”, disse a criança, sobre a refeição de café com leite e pão. Mikaelly com apenas cinco anos parece entender melhor o mundo atual do que muitos adultos, já que sem querer cita a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde): diz que aula é só depois da pandemia “acabar”.
“Sinto saudade de brincar com os meus amigos, Adriano e Dandara. A gente brinca de amarelinha e pega-pega, a gente lancha juntos. Antes de eu voltar pra escola tem que acabar a pandemia”, avaliou a criança.
Marcelo Elias dos Santos, 23, trabalha como entregador, de motocicleta, e vive com a esposa e a filha de 3 anos. Com o auxílio emergencial, a renda é de R$ 1,2 mil. “Já estava difícil arrumar emprego”, relata ele.
O vendaval entortou a bananeira, que só não atingiu mais a estrutura da casa graças ao varal de roupas que segurou a árvore.
“Na hora que começou a ventania estava voltando para casa, quase não consegui entrar pela força do vento”, disse ele.
“Se fosse uma árvore mais pesada tinha quebrado”, avaliou. A família, com a fiação atingida pelo temporal, ficou sem luz por 6h.
“Ninguém tem água quente”, contou. Ainda que o jeitinho para puxar energia sem pagar seja crime, é assim que fazem esses moradores. Só que a gambiarra não aguenta o banho quente de todos.
Para os adultos, é banho frio. “No calor até consigo dar banho nela na água gelada, mas no frio esquentamos a água”, conta ele, na casa de madeira de uma peça só e banheiro do lado de fora.
Temporal – O vento forte que veio com a chuva no sábado à noite causou estragos em Campo Grande. Além da queda de árvores, 15 mil pessoas que têm a energia estruturada junto à concessionária Energisa ficaram sem luz, conforme nota da empresa enviada à reportagem. Cerca de 1,5 mil ainda estão sem energia e as equipes se espalham pelos bairros para atender as chamadas.