O que sobrou do caso que deixou duas mortes sem solução e boate em ruínas
Murilo Boarin Alcalde e Eliane Ortiz foram asfixiados em 2005; quase 20 anos depois, ninguém foi condenado
“(...) tenho certeza de que não foi apenas uma pessoa a autora desse hediondo duplo homicídio e sabe-se perfeitamente que o sigilo dos que participaram da empreitada criminosa, por certo, um dia será quebrado (...)”.
Passados 18 anos das mortes de Murilo Boarin Alcalde e Eliane Ortiz, o sigilo não foi quebrado, permanecendo, até agora, crime impune. Daquele tempo, restou processo arquivado, indignação dos envolvidos, boate em ruínas e a autoria oficialmente desconhecida.
Os dois jovens foram assassinados por asfixia, ambos aos 21 anos de idade, em um dos casos policiais mais emblemáticos de Campo Grande.
A famosa boate Mariza's American Bar, no Bairro Universitário, onde os jovens se encontraram horas antes de morrer, fechou em definitivo em julho de 2017. Antes, nos tempos áureos, o terreno de 478 metros quadrados abrigava dois blocos, contendo quatro suítes, salão, piscina, churrasqueira, três banheiros, varanda externa e canil. No entorno, ainda há vizinhos que lembram dessa época. “Era um entra e sai de gente, muito carro, mas não tinha barulho, não incomodava”.
O fechamento veio depois de longa batalha judicial: uma ação de despejo com cobranças de aluguéis não pagos pela responsável pelo empreendimento, Mariza Fátima dos Santos.
Do imóvel situado no Bairro Universitário, só restaram escombros das paredes, pintadas em tom roxo desbotado e pichadas. A casa de esquina, que abrigou a boate, foi demolida em 2021, por ordem da nova proprietária, para evitar o uso indevido de usuários de drogas. A intenção, segundo apurou a reportagem, é revender a área, em valor ainda a ser calculado.
Também em 2021, Mariza Fátima dos Santos morreu, no dia 30 de agosto, aos 62 anos, após enfrentar problemas de saúde. Depois de passar anos morando no mesmo imóvel do Mariza's American Bar, foi sepultada no Cemitério Santo Amaro. O delegado que presidiu o inquérito, Eduardo Kyrillos Tebet, morreu em julho de 2007, por infarto, aos 47 anos.
Dos acusados, a reportagem localizou os militares, hoje, aposentados. Getúlio Morelli dos Santos não quis falar sobre o caso. Adriano Araújo de Mello limitou-se a dizer que não quer que volte à tona algo que não fez e acrescentou que "deve-se prevalecer a sentença do juiz" [impronúncia dos réus].
Não conseguimos contato com Írio Vilmar ou Ronaldo Vilas Boas. Sobre Lusérgio Abreu, a testemunha chave, a apuração encontrou indícios de que está morando em Roraima. A família de Eliane Ortiz não foi localizada.
A reportagem também entrou em contato com Ministério Público do Estado que, até o fechamento do texto, não se pronunciou sobre possível reabertura do caso ou sobre as declarações do juiz que determinaram o arquivamento.
Todo mundo sabe? - “Acha que já não se sabe?”, questionou o empresário José Marcos Alcalde, 68 anos, pai de Murilo, em entrevista ao Campo Grande News. A advogada Maria Henriqueta de Almeida, que representou Adriano de Araújo afirma: “Ninguém vai achar o culpado, jamais, a investigação foi feita para não achar nada”.
A frase com expectativa sobre o caso, e que abre a reportagem, faz parte da decisão do então juiz da 2ª Vara do Tribunal do Juri, Júlio Roberto Siqueira Cardoso, de não levar a julgamento os três réus denunciados pelo MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul).
Até chegar a esse momento do processo, em setembro de 2008, o caso passou por investigação truncada e complexa, com pedidos feitos pelo MP que suscitaram em severas críticas do magistrado.
As mortes aconteceram na madrugada de 21 de junho de 2005. Eliane era de Marechal Rondon (PR), trabalhava como garota de programa na Mariza's American Bar. Murilo era acadêmico de Administração e, na noite de 20 de junho, foi com um amigo até a casa noturna, onde acabou se encontrando com a jovem.
De lá, Murilo saiu acompanhado de Eliane, deixou o amigo em casa e seguiu para outro local com a garota. Os dois jovens somente foram encontrados no dia seguinte. Estavam mortos, dentro do quarto 42 de um motel.
A notícia da morte do casal chegou às redações quase no fim da tarde. Antes, já havia circulado o suficiente para levar dezenas de policiais civis e militares ao motel, atraídos pela informação inicial de que os crimes tinham envolvido um colega. O quarto não foi preservado, o que se mostrou um dos vários problemas que a investigação se deparou no decorrer dos meses.
A investigação foi comandada pelo delegado Eduardo Kyrillos Tebet. Durou cerca de quatro meses, resultando em um calhamaço de 15 volumes de material.
Entre as dezenas de depoimentos anexados, constou o de Lusérgio Barreira de Abreu, que chegou a integrar o Provita (Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas). O relato dele levou a quatro nomes: do sargento da PM (Polícia Militar) Getúlio Morelli dos Santos, do cabo Adriano de Araújo Melo, além de outrs dois homens: Írio Vilmar Rodrigues e Ronaldo Vilas Boas Ferreira. A testemunha citou outro PM envolvido, nome que nunca foi esclarecido.
A investigação relatou que o casal foi emboscado depois de ter saído da boate, sendo levado para local ermo. Eliane foi asfixiada com uma meia masculina, sendo a primeira a morrer. Murilo foi imobilizado e também sufocado. Os dois foram colocados no carro do rapaz e levados ao motel, onde a cena do crime foi montada.
O inquérito foi finalizado em outubro de 2005 e parou nas mãos dos promotores do Gaeco (Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado), pois havia linha de investigação que apontava para esquema de tráfico de drogas e participação de grupo criminoso organizado.
Antes de oferecer a denúncia, o Gaeco pediu mais prazos para novas diligências. “(...) muito embora se reconheça o esforço e a dedicação do trabalho da Polícia Civil, entende o Ministério Público que as provas colhidas são insuficientes para o oferecimento da denúncia em desfavor dos indiciados Adriano e Getúlio, eis que não foram esclarecidas todas as circunstâncias que permeiam a autoria ou a participação deles nos crimes”.
O MPMS apontou, ainda, o que considerou várias falhas na investigação: a meia masculina usada para asfixiar Eliane desapareceu, pertences das vítimas foram parar no lixo, não houve coleta suficiente de urina da jovem, além de não ter sido colhido material semelhante a esperma encontrado nela. Também foi citada a presença de policiais que não faziam parte da investigação durante a necropsia.
As novas diligências se arrastaram até que, em fevereiro de 2007, o juiz Júlio Roberto Siqueira teceu comentários mais incisivos nos despachos processuais. Ao revogar as prisões dos indiciados, comentou: “(...) o feito virou um emaranhado sem fim dando azo a um sem número de versões e interpretações que jamais poderiam levar à elucidação dos verdadeiros autores do crime em apuração”.
Siqueira cita também o fato de Lusérgio Barreira Abreu ter mentido em cinco dos oito depoimentos prestados, o que seria um “autêntico tiro n'água” do MPMS. “De que adianta lastrear a denúncia num depoimento inseguro como foi aquele apresentado pela testemunha?”.
Em dezembro de 2007, o magistrado se manifestou novamente contra pedido de novas diligências e determinou que o Gaeco chegasse às alegações finais. "Chega de esforços inúteis ou de requerimentos ilegítimos (...)". Listou que foram 750 dias a mais de andamento processual, com 57 interceptações telefônicas, 37 quebras de sigilo telefônico e 30 pedidos de prorrogações de interceptações.
Por fim, em 2008, o MPMS ofereceu denúncia contra os policiais militares e Írio Vilmar Rodrigues por homicídio qualificado por motivação torpe, emprego de meio cruel, emboscada e dissimulação de cadáver. Em relação a Ronaldo Vilas Boas Ferreira, que teria dirigido o carro de Murilo até o motel, os promotores optaram pela impronúncia.
O juiz determinou a impronúncia de todos. “Sinceramente, sempre discordei da posição e da linha de raciocínio encetadas pelo Parquet Estadual [MPMS]”. Siqueira avaliou que a linha de investigação por crime passional seria a mais lógica para se conseguir esclarecimento dos crimes. Citou depoimento de uma das camareiras, que teria visto Adriano de Araújo no motel, mas que, naquele momento, ocupava o celular à distância de 10 km.
A gota de sangue de Getúlio Morelli, encontrada na entrada do quarto, também foi descartada como prova pelo magistrado. No depoimento, o sargento disse que soube da ocorrência, foi até o motel e se feriu no Walk-talk da viatura, o que foi corroborado por testemunhas. Siqueira também lembrou que a cena do crime não foi preservada, sendo passagem de policiais e funcionários do motel.
“Confesso que retardei ao máximo o sentenciamento deste feito por achar e estar convicto de que este crime será solucionado em breve quando os verdadeiros culpados serão levados às barras do Tribunal do Júri”, discorreu o juiz. Além de não levar a julgamento os denunciados, pediu que processo fosse encaminhado ao MPMS para instaurar processo de falso testemunho e favorecimento pessoal cometido por Lusérgio Abreu.
Espero, sincera e pessoalmente, que as autoridades encarregadas da verdadeira função da investigação policial não se acomodem com esta decisão e a tenham como marco primeiro e inicial de uma nova linha de conduta que, sem exageros, “longe dos holofotes”, finalizou o juiz Júlio Siqueira.
Este despacho data de 1º de setembro de 2008, ou seja, há quase 15 anos sem que o “em breve” tenha chegado para as vítimas.
Novos tempos – José Marcos Alcalde não concorda com a avaliação do juiz. “Poderia ter feito por outros caminhos, não arquivar”. Para ele, os homens apontados na denúncia são os culpados, mas não os únicos. “São mandados, estão por trás do crime, tem mais gente envolvida”.
Alcalde diz que o delegado do caso, Eduardo Kyrillos, “abraçou a causa”, mas foi até onde pode, sem apoio. “Ele trabalhou sozinho, dava murro em ponta de faca, foi até onde conseguiu”. Diz que hoje o Estado passa por outro momento e o caso seria elucidado com rapidez. “Na época faltou boa vontade, não tinha onde bater, as forças não eram iguais”.
A advogada Maria Henriqueta de Almeida avaliou. “Ninguém vai achar como foi, não interessa saber, é o que acho; acho não, tenho certeza”.
O MPMS recorreu da impronúncia dos acusados, chegando ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), que, em 2010, manteve a decisão de primeira instância. Em novembro de 2019, o Campo Grande News apurou que o duplo homicídio estava no radar da força-tarefa sediada na Garras (Delegacia de Repressão a Roubo a Banco, Assaltos e Sequestros), com apoio do Gaeco.
O grupo foi criado em 2018 para averiguar três execuções ocorridas em período de seis meses, em Campo Grande. A equipe apresentou resultados efetivos na Operação Omertà, culminando na prisão dos empresários Jamil Name e Jamil Name Filho, acusados de chefiar milícia dedicada a executar desafetos. Porém, até agora, nada de concreto e oficial levou a possível ligação e reabertura do homicídio de Murilo e Eliane.
Justiça? - Na única entrevista dada pela mãe de Murilo ao Campo Grande News, em 2014, Elizabeth Regina Boarin falou sobre a ausência do filho, ao lançar o livro "Meu filho partiu, eu fiquei...e agora?", escrito com outras três mulheres, que também perderam seus filhos. "A justiça não vai ser através de mim, das pessoas, vai ser através de Deus”, declarou, à época.
Uma curiosidade: desde a morte de Murilo e Eliane, nenhuma porta do motel tem o número 42. Deixou de existir na sequência numérica dos quartos do local, sistema que perdura até hoje.