Gigantes, princesa e memória do Bar do Pombo na BR que leva a São Paulo
Os eucaliptos e treminhões monopolizam a paisagem por 338 quilômetros que já foi cerrado
Os 338 quilômetros da BR-262 de Três Lagoas a Campo Grande têm a marca de gigantes: seja nos 30 metros e 75 toneladas dos treminhões ou nos eucaliptos que crescem para imensidão do céu.
Eles monopolizam a paisagem, que, dominada pela cadeia da celulose, expulsou o Cerrado. Mas a rodovia, caminho para São Paulo, também tem o grande coração da mulher que acolhe romeiros na varanda de casa sem cobrar; o pastar manso de Princesa, a cabra criada a mamadeira em uma invasão ao lado da rodovia; a igrejinha com missas duas vezes por mês; e as lembranças dos viajantes no Bar do Pombo.
A 262 que ruma para o Leste também tem o cafezinho grátis, o popular 0800, nos bares e quiosques. A ruidosa investidas dos vendedores ambulantes que aproveitam a forçada parada de uma hora na pista em obras para vender de pano de prato à pimenta.
Nos últimos três anos, o Campo Grande News percorreu o trajeto Campo Grande a Três Lagoas por duas vezes. Ocasiões em que identificou na via um campo fértil para buracos, sacolejo e perigo por falta de acostamento. Agora, perto de Três Lagoas, o asfalto novo traz a expectativa de que, finalmente, a pista seja preparada para o tráfego pesado do eucalipto, conforme seu atual perfil econômico.
Princesa e Rozemar: moradoras entre MS e SP
Percorrido o 1,3 quilômetro da nova ponte sobre o Rio Paraná, na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul, a rodovia tem meio-fio para impedir o acesso à pista de trânsito veloz, mas uma pequena abertura com uma estradinha de terra nos convida a entrar e conduz ao barraco de Rozemar Rosa Inácio de Freitas, 42 anos.
Cozinheira, mas desempregada, ela faz da área ocupada uma “chacrinha”, com plantio de milho e mandioca. Amarrada na cerca, de olho no movimento da BR, fica Princesa, uma cabra que agora começa a pastar.
Até então, Princesa era alimentada com mamadeira. De casa, Rozemar se acostumou ao barulho da pista e acompanha a passagem de ciclistas e caminhantes que usam o espaço para atividade física.
“É um lugarzinho sossegado”, define Rozemar, sobre o endereço onde mora com o marido e o enteado.
Quiosque 24 horas e café “0800” para viajantes
Na saída de Três Lagoas, com destino a Campo Grande, um quiosque, negócio de família, teve que se adaptar aos gostos e rotinas do viajante. Passou a funcionar 24 horas e incorporou refrigerante, suco e pimentas ao cardápio, que, até então, já coloria a margem da BR-262 com pães, bolos e requeijão.
Kézia Mara de Menezes, 20 anos, conta que o quiosque foi ideia da avó, que morava no distrito de Arapuá, próximo do local. Hoje, a jovem traz nos braços a quarta geração da família: o sorridente bebê João Gabriel. Nos itens preferidos da clientela entram frango caipira (R$ 35), requeijão (R$ 30) e nozinho, a bolinha de massa de mussarela (R$ 25).
Atualmente, o requeijão e o nozinho são importados de Minas Gerais. Ela conta que a medida foi tomada diante da entressafra do leite, quando cai a produção em razão da estiagem. Por semana, são vendidos 30 quilos dos dois produtos. Além do funcionamento dia e noite, outros atrativos são café e chá grátis aos clientes.
“Ajudo de coração”, diz anjo da guarda dos viajantes
Idealizadora do quiosque 24 horas, Marilza Barbosa de Menezes, 60 anos, é um coração de portas abertas na BR-262. “Às vezes quebra o caminhão e o motorista não tem dinheiro. Lavo roupa, dou comida. No que posso ajudar as pessoas, ajudo de coração”, diz.
Para os andarilhos, também entrega roupas e comida. Na manhã de quarta-feira (dia 3), Marilza conta que auxiliou romeiros que viajavam de Sidrolândia para Aparecida (São Paulo). Duas amigas vão de bicicleta, enquanto o esposo de uma delas vai de carro, prestando apoio.
“Chegaram às 19h e elas disseram que não tinha comido nada durante o dia. Fiz uma janta. Eles tomaram banho, dormiram aqui e saíram às duas horas da manhã”, diz. Os viajantes montaram barracas na varanda da casa de Marilza.
Ela conta que o gesto de fazer comida enterneceu os viajantes. “Cozinho com carinho e dedicação”, diz Marilza, que passa a noite fazendo bolos e salgados para vender na estrada. “Bolo de banana, fubá, abacaxi, tudo natural”.
Com o período de chuvas, quando a produção leiteira em MS volta a crescer, Marilza também deve voltar a fazer requeijão. Para cada um quilo do produto, são utilizados 20 litros de leite.
As lembranças do Bar do Pombo
Há mais de 30 anos o Bar do Pombo tem endereço no lado esquerdo da BR-262, no sentido de quem segue de Três Lagoas para Campo Grande.
“Era 500 metros mais para baixo, mas mudou em 1987 para ficar mais perto da rodovia”, diz o proprietário Dejair Bonini, 58 anos, que assumiu o ponto comercial há três anos.
Referência na estrada, o bar é um ponto de parada recheado de lembranças para quem fazia o caminho na infância, viajando com a família.
“Passam e contam que estiveram há muitos anos, quando o bar era lá no fundo. Trazem foto de 1980, 1982”, afirma Dejair.
Ele é natural de Monte Castelo (SP), foi caminhoneiro por 15 anos, gerente de fazenda e hoje não troca o lar na beira da rodovia pela cidade.
O comerciante até tem uma casa a cidade, mas nos últimos três anos, dormiu por lá não mais do que cinco noites. O Bar do Pombo tem café grátis e banheiro feminino trancado à chave para evitar depredações. O atendimento vai das 5h30 às 21h30.
Temporariamente, por falta de cozinheira, não estava servindo almoço. Mas, previsão era de retomada das refeições. Na janta, o cardápio é espetinho de carne. O nome do bar é alusivo ao córrego Pombo, que corre a pouca distância do comércio.
“Puxar madeira para mim é tudo”
Com iniciais de três esses, Sílvio dos Santos Silveira, 37 anos, dirige um dos gigante de 30 metros e com 75 toneladas de eucalipto. Morador de Três Lagoas, ele “entrou” na cadeia da celulose, que marca a economia da região Leste, ajudando na construção da Eldorado. Com a fábrica inaugurada, passou a ser motorista de tritrem, os extensos veículos que literalmente enchem os olhos de quem passa por esse trecho da BR-262.
A produção é dinâmica e os veículos não param. O tritrem de Sílvio, por exemplo, é revezado com outros dois motoristas. A viagem na busca pelo eucalipto incluem 176 quilômetros na BR-262 e outros 75 quilômetros de estrada de terra nas fazendas.
No trajeto, a velocidade é controlada, com variações de 75 km/h a 80 km/h. A ultrapassagem é proibida e as empresas orientam para que os tritrens mantenham 500 metros de distância na rodovia. “Noventa por cento dos acidentes são imprudência”, avalia e lembra que as empresas de transporte são bastante fiscalizadas e cobram que os condutores cumpram as regras.
Na rotina de trabalho, dirigir um veículo de 30 metros de extensão traz sérias dificuldades para estacionar. Nem todo os pátios de postos de combustíveis comportam o veículo ou têm pavimento que resistam ao peso dos gigantes. “Estou no transporte de madeira desde o começo. Puxar madeira para mim é tudo”, diz.
O Sagrado Coração de Jesus na BR-262
Num caminho marcado por fazendas que levam nomes religiosos, como Santa Adélia, Santa Rita, Nossa Senhora Aparecida e São Sebastião, eis que surge uma pequena igreja na margem direita da BR-262. A chave fica numa lanchonete vizinha ao templo.
Operadora de caixa, Aline Pereira Queiroz, 28 anos, mora em uma das fazendas vizinhas e abre as portas da igrejinha Sagrado Coração de Jesus, que fica a 60 quilômetros de Ribas do Rio Pardo.
“No primeiro domingo do mês tem a missa com as irmãs. No terceiro sábado do mês, com os padres. Antigamente, vinha bastante gente. Moravam mais famílias”, diz.
Na longa espera da obra, rodovia vira ponto comercial
Em obras perto de Três Lagoas, a BR-262 fica uma hora fechada e exige paciência dos viajantes. A primeira parada da reportagem foi na terça-feira (dia 2) à noite. Após espera de 20 minutos, a viagem prosseguiu em meio a uma nuvem de poeira, levantada por um caminhão que seguia à frente.
Antes do fluxo retornar da meia-pista para o trânsito normal, ainda dá tempo de conferir os “espertinhos” que tentam cortar caminho pela esquerda e tumultuam o trajeto ao serem forçados a voltarem para a única pista sem barreiras à livre circulação.
Na quarta-feira de manhã (dia 3), a espera foi de 40 minutos e marcada pelos ruidosos vendedores ambulantes, que vão leiloando seus produtos, na linha “fazemos qualquer negócio”. “Tem salame, pilão, castanha de caju, guardanapo, cocada, água, pimenta, queijo, suporte de pen drive”, conta um vendedor que se se identificou apenas como Vinícius. A conversa é rápida e eles partem em busca de clientes.
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