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Interior

Ambos mortos por covid-19, pai foi infectado no hospital e filho no enterro

Bento Pereira da Silva, de 75 anos e o filho, José Carlos da Silva, 56, nem ao menos tiveram contato um com o outro

Lucia Morel | 15/07/2020 13:44
Bento e José Carlos, lado a lado. (Foto: Arquivo da Família)
Bento e José Carlos, lado a lado. (Foto: Arquivo da Família)

Onze dias separam a morte do pai e do filho por covid-19. Bento Pereira da Silva, de 75 anos e o filho, José Carlos da Silva, 56, nem ao menos tiveram contato um com o outro, mas conforme os registros oficiais, acabaram sendo infectados, e por terem doenças preexistentes, não resistiram.

Quem conta a história de dor e perda é a filha e irmã, Martha Pereira, de 51, que é funcionária pública da Prefeitura de Dourados, cidade a 260 Km de Campo Grande, onde as mortes aconteceram. Para ela, houve descuido em ambos os casos.

O primeiro a adoecer foi Bento, que desenvolveu enfisema pulmonar depois dos anos em fumou. Mesmo longe do tabaco, as sequelas ficaram e ele acabou sendo internado com problemas no pulmão, no Hospital Evangélico de Dourados, em 2 de junho.

Passaram-se alguns dias e ainda internado, ele recebeu como companheiro de enfermaria um senhor também com problemas pulmonares. Ninguém sabia, nem mesmo o hospital, mas esse colega de internação estava com covid-19. “Eu tive medo, mas me falaram (médicos) que esse senhor tinha o mesmo problema que meu pai, e só”.

No entanto, dois dias depois, esse paciente que foi internado no mesmo quarto que Bento piorou e precisou ser removido para UTI (Unidade de Terapia Intensiva), onde acabou morrendo. Pouco depois, soube-se que o diagnóstico dele havia dado positivo para o novo coronavírus. “A gente ficou sabendo depois, que esse paciente testou positivo”, relatou Martha.

Bento ao lado das netas, bisnetas e bisnetos. (Foto: Arquivo Familiar)
Bento ao lado das netas, bisnetas e bisnetos. (Foto: Arquivo Familiar)

Mais alguns dias passaram e o pai dela começou a ter sintomas além dos causados pelo enfisema. Bento teve febre e ao fazer tomografia do pulmão, viram que estava comprometido, já com sinais de covid-19. “Ele passou mal e então foi entubado e em coma. Ficou na UTI esse tempo todo”, contou, sem lembrar a data correta dos acontecimentos. A morte, no entanto, foi em 25 de junho.

Martha lembra que precisou insistir muito com os profissionais do Hospital Evangélico para que fizessem em Bento o teste de covid. Isso, porque, conforme ela relata, “não queriam se comprometer, porque sabiam que se meu pai estivesse com a doença, é porque ele pegou no hospital, do paciente que ficou no quarto com ele”, revela.

Para ela, caberia processo judicial, mas “é mais sofrimento, cansaço e não queremos isso, não agora”, afirma. O diagnóstico positivo para o novo coronavírus, segundo registros oficiais, foi feito em 16 de junho, nove dias antes de Bento falecer.

José Carlos – A filha e irmã conta ainda que José Carlos fazia tratamento contra alcoolismo e quando o pai deles morreu, ele estava internado na clínica de recuperação e a única vez que saiu de lá, foi para acompanhar, de longe, o enterro de Bento.

Até mesmo as visitas à clínica ficaram limitadas, diante da onda do novo coronavírus em Dourados. “Fazia bem mais de seis meses que ele estava em tratamento lá, estava internado desde agosto do ano passado e nem chegamos a contar pra ele que o pai tinha pegado covid”, disse.

Martha lembra que José ficou sabendo da morte do pai no dia em que ela ocorreu e que a clínica só o liberou para ir ao sepultamento e voltar. Segundo ela, esse foi o único momento em que o irmão pode ter tido contato, de alguma forma, com o vírus, ao menos até onde ela sabe.

“Falei com minha irmã e combinamos que ele (José) tinha o direito de saber e vir se despedir do pai, então minha irmã foi na clínica e o buscou. Trouxe ele na porta do cemitério e estava só eu lá. Quando eu contei o que era, deu uma crise nele, ficou desesperado”, comentou.

Depois disso, José Carlos voltou para a internação na clínica de recuperação, mas já não foi mais o mesmo. Além de ter cirrose e também doença no pulmão, ele foi ficando entristecido e abatido, não acreditando que o pai havia falecido.

“Ele deixou de comer, não dormia de noite e foi ficando mais debilitado até que o levaram na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e voltaram pra clínica. Daí, eles nos avisaram, na sexta (3 de julho) que iam levá-lo na UPA de novo e como ele já chegou lá mal, já entubaram, até achar vaga em hospital”, detalhou.

José Carlos, segundo a irmã, chegou na UPA já com quadro de pneumonia agravada e fico na área vermelha até ser transferido, no domingo, pro Hospital da Vida. “E ele continuou do mesmo jeito, sem avanço, até que na segunda-feira, ele faleceu”. Foi na UPA, em 4 de julho, que o teste que resultou positivo para covid foi feito em José.

Para Martha, a insatisfação nesse caso foi decorrente da falta de atenção do Hospital da Vida à família. Segundo ela, antes mesmo dela e dos outros irmãos saberem da morte, a imprensa douradense já havia anunciado o falecimento de José Carlos.

Martha e pai. (Foto: Arquivo da Família)
Martha e pai. (Foto: Arquivo da Família)

“Eles me disseram que não era culpa deles, que a informação não tinha vazado do hospital e que o exame deu positivo pra covid porque a Vigilância Sanitária foi lá e fez o teste rápido nele pouco depois do óbito. O exame que fizeram na UPA deu inconclusivo”, lamentou.

Ela diz não entender tudo que aconteceu e que as perdas são duras, mas também que tem dúvidas sobre o diagnóstico do irmão, já que ela e uma irmã, que mesmo após a morte do pai tiveram contato com ele, testaram negativo para a doença. “Fazia mais de uma semana do contato e deu negativo, não sei”, comenta.

Família – Martha diz que o sofrimento e a dor são grandes. “Onze dias depois de enterrar meu pai, enterro meu irmão”, enfatiza. Bento teve cinco filhos, sendo três mulheres e dois homens. Além disso, 13 netos e seis bisnetos, sendo que no dia em que ele faleceu, nasceu a mais nova, neta justamente de José Carlos.

“Se tem uma coisa que meu pai era, era honesto, e isso ele deixou na criação dos filhos. Ele era muito severo nessa questão de honestidade, foi uma pessoa que nunca fez crediário, porque dizia que “se você não tem dinheiro pra comprar, fica sem”. Era de uma idoneidade fora do normal”, destaca.

Já o irmão, apesar do alcoolismo, que era uma luta de pelo menos sete anos, “era moroso, excelente filho, carinhoso, um coração enorme”, afirma. Apesar disso, enfraqueceu-se diante da bebida alcoólica, o que obrigou a família a interná-lo para tratamento mais de uma vez. “Ele ficou internado duas vezes em São Paulo e agora essa, aqui, que ia fazer um ano”. José deixa dois filhos, sendo um homem e uma mulher e dois netos.

“Ainda está muito difícil. Eu nunca imaginei que ia colocar meu pai onde (Hospital Evangélico) eu ia perder ele pra essa doença. E pior ainda, perder meu irmão do mesmo jeito. Quando meu irmão faleceu, primeira coisa que pensei foi em como falar isso pro meu pai, então assim, está tudo muito difícil ainda”.

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