ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
DEZEMBRO, QUINTA  26    CAMPO GRANDE 21º

Interior

Bombeiro e servidores do Samu viram réus por racismo contra estudante morta

Estudante morreu em aldeia de Dourados e MPF denunciou negligência no atendimento

Helio de Freitas e Aline dos Santos | 21/07/2020 11:15
Sede do Samu, em Dourados; três ex-coordenadores e servidora viraram réus em ação na Justiça Federal (Foto: Divulgação)
Sede do Samu, em Dourados; três ex-coordenadores e servidora viraram réus em ação na Justiça Federal (Foto: Divulgação)

Três médicos ex-coordenadores do Samu (Serviço Móvel de Urgência), uma técnica auxiliar de regulação médica da unidade e um sargento do Corpo de Bombeiros viraram réus na Justiça Federal em Dourados por racismo e homicídio culposo por negligência pela falta de atendimento a uma adolescente indígena.

Joice Quevedo Arce, 17, morreu no dia 16 de abril do ano passado ao sofrer parada cardíaca quando participava de comemorações pelo Dia do Índio na Aldeia Jaguapiru.

Com a decisão do juiz da 1ª Vara Federal, os médicos Eduardo Antonio da Silveira, Jony Alisson Bispo de Sant’Ana e Renato Oliveira Garcez Vidigal, a servidora do Samu Greicy Kelly Barbieri Mendonça e o sargento do Corpo de Bombeiros Ayrton Oliveira Motta passam a ser réus por racismo e homicídio culposo (quando uma pessoa tira a vida de outra sem a intenção, por negligência, imprudência ou imperícia).

Os cinco foram denunciados em dezembro do ano passado pelo procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida.

Eduardo Antonio da Silveira, Jony Alisson Bispo de Sant’Ana e Renato Vidigal coordenaram o Samu de 2012 a 2019. Eles são acusados por discriminação étnica da população da Aldeia Indígena de Dourados, “pois determinaram/ratificaram o não atendimento de ocorrências emergenciais dentro dos limites do local”.

A técnica auxiliar de regulação médica Greicy Kelly Mendonça e o sargento do Corpo de Bombeiros Ayrton Motta foram os responsáveis pelo atendimento das chamadas no dia da morte da estudante indígena.

Conforme a denúncia à qual o Campo Grande News teve acesso, foram os dois que receberam os pedidos de socorro no momento em que a adolescente teve parada cardíaca ao participar de atividade física na Escola Guateka Marçal de Souza. Todos os denunciados foram ouvidos pelo MPF durante o procedimento de investigação e negaram responsabilidade na morta da estudante.

Outro lado – O advogado Patrick Hammarstrom, que representa o sargento bombeiro Ayrton Oliveira Motta, disse que seu cliente está tranquilo por ser “o maior interessado” na elucidação dos fatos para demonstrar sua inocência.

“Ayrton Oliveira Mota é bombeiro militar há anos, profissional extremamente dedicado e ostenta em suas alterações pessoais relevantes notas que corroboram com a figura de um agente público íntegro e dedicado para com o serviço”, afirmou o advogado.

O médico Renato Vidigal, que coordenou o Samu de fevereiro a novembro do ano passado, também se manifestou sobre o caso. Em nota ao Campo Grande News, ele disse que da sua parte nunca houve orientação para não atender chamados das aldeias.

“Pelo contrário, sempre deixei claro que não havia nenhum documento oficial que proibisse a entrada na aldeia. O protocolo de atendimento diz que o médico regulador (que atende ao telefone) é o responsável pelo direcionamento do atendimento necessário para cada situação”, afirma.

Vidigal diz que ainda existe “encrostado na mentalidade de algumas pessoas”, o preconceito e a errada visão de que a aldeia indígena é lugar perigoso. “Situação essa que sou totalmente contra”.

No caso da morte da estudante, Vidigal afirma que a adolescente tinha doença cardíaca prévia e mesmo assim praticava exercício de alta intensidade. “Teve o atendimento realizado de imediato pela colega médica que estava na aldeia, porém, conforme a mesma relata, não havia o mínimo de equipamentos necessários no local para suporte à parada cardíaca”.

Ele afirmou que sempre defendeu atendimento na aldeia e diz abominar qualquer forma de discriminação e preconceito contra os povos indígenas. “Havendo segurança para a equipe de atendimento, seja na cidade, zona rural ou aldeia indígena, não há porque não realizar o atendimento”.

Jony Alisson de Sant’Ana disse que não vai se manifestar. A servidora do Samu Greicy Kelly Mendonça informou que ainda não foi citada pela Justiça Federal. O Campo Grande News ainda não conseguiu falar com o médico Eduardo Antonio da Silveira. Existe informação de que ele não mora mais em Dourados.

A morte – A investigação para apurar o caso começou oito dias após a morte da estudante. Joice disputava prova de corrida com outros alunos quando começou a passar mal e teve parada respiratória.

A denúncia do MPF traz a transcrição de ligações feitas pela diretora da escola ao Samu e da conversa entre a atendente do Samu e o sargento bombeiro sobre o pedido de socorro.

Para o procurador da República, a atendente do Samu, “dolosamente, ciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, praticou discriminação étnica da população da Aldeia Indígena, pois não acolheu/negou os atendimentos emergenciais solicitados pelo telefone 192”.

Sobre o bombeiro, a denúncia afirma que ele, “dolosamente, ciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, praticou discriminação étnica da população da Aldeia Indígena, pois negou o atendimento emergencial prestado pelo Corpo de Bombeiros”.

A estudante foi trazida à cidade pelos próprios índios, acompanhada pela médica do posto de saúde local, mas chegou morta ao Hospital da Vida.

O MPF acusou o coordenador do Samu no período de 2012 a 2017, o médico Eduardo Antonio da Silveira, de determinar que a aldeia indígena não recebesse atendimento de urgência do órgão “sob o pretexto de não existir segurança para as equipes que lá entrassem para prestar os primeiros socorros”.

Segundo a denúncia, o então coordenador fez reuniões com a equipe para deixar claro que, caso houvesse demanda na aldeia, o atendimento deveria ser recusado sob o pretexto de que somente as forças nacionais ou os bombeiros teriam competência para tanto.

“Os demais coordenadores gerais que o sucederam [Jony Alisson Bispo de Sant’Ana e Renato Vidigal) continuaram adotando tais práticas sem se preocupar em averiguar se possuíam respaldo jurídico quando a isso”, afirma trecho da denúncia.

Sobre a alegação de falta de segurança, o MPF afirmou na denúncia acatada pela Justiça Federal nos casos em que a cena apresenta risco para a equipe, os atendentes são orientados, por protocolo do Samu, a contatar o apoio policial para fazer a segurança.

“Ou seja, se ocorrer agressão por arma de fogo e souberem que o autor ainda está na região, a equipe aguarda o apoio policial, sendo que não nega, em hipótese alguma o atendimento para aquela vítima”, diz a denúncia.

O procurador da República afirmou na denúncia que 19 técnicos auxiliares de regulação médica foram ouvidos como testemunha e todos afirmaram que a determinação de não atendimento da Aldeia Indígena de Dourados foi ‘oficializada’ pelo coordenador que assumiu em 2012 [Eduardo] e ratificada pelos seus sucessores.

Sobre a atendente do Samu Greicy Kelly, o MPF afirma que ela teve conduta discriminatória em relação ao atendimento de Joice Quevedo Arce. Segundo a denúncia, a servidora recusou propositalmente o atendimento à indígena, uma vez que acolheu determinação ilegal estabelecida pelos coordenadores gerais do Samu.

“As escusas no que diz respeito ao acatamento de ordens de cunho hierárquico superior não merecem acolhida, uma vez que são agentes públicos e possuem o deve orientar as suas condutas nos limites e rigores da lei. Portanto, é evidente que sua conduta foi preconceituosa”, afirmou o procurador.

MPF afirmou na denúncia que conduta semelhante teve o sargento do Corpo de Bombeiros Ayrton Mota. “Em que pese suas alegações de que a viatura do Corpo de Bombeiros estava ‘baixada’ [estragada], é possível perceber, por meio das gravações do Samu, que havia outra viatura que prontamente poderia ter acionado”.

Vila Olímpica da Aldeia Jaguapiru, onde estudante participava de prova quando teve parada cardíaca (Foto: Divulgação)
Vila Olímpica da Aldeia Jaguapiru, onde estudante participava de prova quando teve parada cardíaca (Foto: Divulgação)


Nos siga no Google Notícias