EUA: Terra da Liberdade ou Terra da Escravidão
Charlottesville também é aqui. Charlottesville não é fruto de um dia de manifestações. O mundo está chocado com as manifestações racistas dessa pequena cidade norte-americana, mas o que não pensam é que essa é a intenção dos "supremacistas", uma corruptela de racistas não disfarçados. Mas todo esse barulho - e mortes - começou há muito tempo... Há histórias mal contadas.
À primeira vista, a escravidão era uma das poucas instituições que a América do Norte e a do Sul tinham em comum. Tanto a plantação norte-americana de tabaco quanto o engenho brasileiro dependiam de escravos africanos quando ficou claro que eles eram mais baratos e poderiam ser mais explorados que a mão de obra europeia em regime de servidão por contrato na América do Norte e pelos índios na do Sul.
Os primeiros escravos africanos chegaram ao Brasil em 1538; na América do Norte, não houve nenhum escravo antes de 1619. Não havia plantações de açúcar nos EUA; e estas - os engenhos da Bahia, são Paulo e Pernambuco - foram, sem dúvida, os lugares onde as condições de trabalho para os escravos foram mais cruéis. As minas de ouro, nem tampouco as plantações de café do início do século XIX. A escravidão foi tão importante para o Brasil que, em 1825, os negros representavam 56% da população, em comparação com 22% na América Espanhola e 17% na América do Norte. Mas os escravos brasileiros tinham mais facilidade de conseguir a alforria que os das plantações de tabaco nos EUA. No México e em Cuba, um escravo podia até mesmo ter seu preço declarado e comprar sua liberdade em muitas parcelas. Os escravos brasileiros de mais dias livres (todos os domingos, além de 35 dias santos) que seus congêneres norte-americanos.
Começando no Brasil, tornou-se norma na América do Sul que os escravos tivessem suas próprias pequenas parcelas de terra.
Certamente, não podemos nem devemos imaginar um cenário otimista para o escravo brasileiro. As plantações brasileiras de cana de açúcar, dando início a um "capitalismo de ponta", funcionavam 24 horas por dia, sete dias por semana, e os escravos, literalmente, eram explorados até a morte. Foi um fazendeiro brasileiro que declarou: "quando comprava um escravo, era com a intenção de usá-lo por um ano, já que poucos sobreviviam mais tempo que isso".
O surgimento das novenas e uma escravidão menos draconiana
De acordo com a tradição católica, as novenas surgiram quando os cristãos teriam ficado reunidos, por nove dias, em torno de Maria logo após a morte de Jesus e a descida do Espírito Santo. Mas, no Brasil colonial, as novenas eram o período de nove dias em que o escravo era submetido a chibatadas e suas feridas eram esfregadas com sal e urina. Nas Minas Gerais do ouro, não era nenhum segredo que as cabeças cortadas de escravos fugitivos eram expostas à beira da estrada. Não é de surpreender que a expectativa de vida de um escravo no Brasil fosse, em média, de apenas 23 anos ainda nos anos 1850.
Por outro lado, o escravo no Brasil tinha o direito de se casar, o que era negado ao escravo nos EUA. E tanto no Brasil como na América Espanhola, a tendência era que os códigos de servidão se tornassem menos draconianos com o tempo.
Por volta de 1760, a população de escravos nos EUA tinha atingido seu pico, chegara a quase um terço da população. Colocaram nas leis que a escravidão seria "durante vitae", por toda vida, "assim como as crianças nascidas de qualquer negro". Também tornou-se lei nos EUA que não seria crime matar negro por qualquer motivo. Os escravos, conforme a lei, eram "bens" (posteriormente, chamados "bens móveis"). Chegou-se ao ponto que imensas massas de escravos fugitivos da Carolina começassem a atravessar a fronteira para a Florida que pertencia à Espanha.
O governador espanhol lhes dava terras e construiu um assentamento autônomo, desde que se convertessem ao catolicismo.
Diferença marcante entre EUA e Brasil escravocratas está na procriação entre raças
A diferença mais marcante entre os dois sistemas de escravidão - brasileiro e norte americano - é o tabu construído nos EUA contra a procriação entre raças, a "miscigenação" como era chamada até o século XIX. O Brasil e as colônias espanholas aceitaram, desde o início, a realidade das uniões inter-raciais. Em 1811, os vários tipos de "mestiços" constituíam mais de um terço da população da América Espanhola. No Brasil do século XVIII, os mulatos ocupavam apenas 6% da mão de obra predominantemente africana nas plantações. Mas há um dado que escapa para muitos: os mulatos ocupavam um quinto dos postos gerenciais e artesanais mais qualificados; eles eram a classe subalterna dos portugueses. Fica fácil perceber a "panela de pressão" que esses mulatos urbanizados colocaram sobre o regime imperial pela abolição.
Já nos EUA, houve tentativas "sofisticadas" de proibir tais uniões. Isso, foi em parte, consequência de uma grande diferença entre as colonizações britânicas, de um lado, e portuguesa e espanhola, de outro. Quando os britânicos migraram para a América, geralmente levaram consigo a esposa ou companheira. Quando os homens espanhóis e portugueses atravessaram o Atlântico, quase sempre viajaram sozinhos, em média, havia apenas 10% de mulheres vindo para a América do Sul. Essa diferença foi, e continua sendo, fundamental, ainda que pouco percebida. Um indivíduo com uma "gota" sequer de sangue afro-americano - um único avô - é categorizado como negro nos EUA, não importando que sua pele fosse branca. Assim, ele continuava sendo um escravo. Pior ainda, o casamento inter-racial era tratado como crime passível de punição na Virgínia (Estado onde fica Charlottesville) desde 1630. Essa lei foi copiada por outros Estados. Em 1915, 28 Estados ainda mantinham essa proibição. Houve até mesmo uma tentativa, em dezembro de 1912, de emendar a Constituição dos EUA a fim de proibir os casamentos inter-raciais "para sempre".
As diferenças de escravidão são importantes
Fazia uma grande diferença, então, para onde iam os escravos africanos. Aqueles com destino à América Latina acabaram em uma espécie de caldeirão racial onde o escravo, sendo homem, tinha uma chance razoável de obter sua liberdade se sobrevivesse aos primeiros anos de trabalho brutal, e, sendo mulher, tinha uma probabilidade não trivial de gerar um filho "mestiço", o que a colocava em uma situação um pouco menos opressora. Aqueles destinados aos EUA entravam em uma sociedade em que a distinção entre branco e negro era definida e sustentada de forma muito mais rígida. Eles jamais seriam proprietários de terras. Nunca votariam. Jamais poderiam ser encontrados fora de casa ou da plantação sem a companhia de um branco. Os brancos que ensinassem negros a ler e escrever eram criminosos. A Terra da Liberdade era para um quinto da sua população, a Terra da Escravidão Permanente. No fim, é claro, só poderia terminar em guerra entre os Estados abolicionistas e os escravocratas.