Todos os pilares da democracia estão sob suspeição para os manifestantes
Todos os pilares da democracia estão sob suspeição para os manifestantes da Avenida Paulista.
Uma pesquisa realizada com 571 manifestantes na Avenida Paulista (SP) sob os auspícios de professores da USP e da UNIFESP, duas universidades de São Paulo, mostra um quadro surpreendente: baixa confiança em todos os partidos e nos políticos, baixa confiança nas ONGs e nos movimentos sociais, baixa confiança na grande imprensa nacional e nos comentaristas políticos. Só confiam nos grupos que organizaram as passeatas. Uma novidade capital para o espectro ideológico defendido pelos manifestantes está na grande ascensão de Jair Bolsonaro, virtualmente empatado com Marina Silva. Também testaram a concordância com boatos difundidos pela internet e o resultado também surpreende - os manifestantes acreditam neles. Uma combinação entre a desconfiança na grande imprensa nacional e a ascendência de fontes de informação sem checagem, pode estar colocando a qualidade da informação em xeque no país dos manifestantes. Também é possível discutir a pesquisa publicada no jornal espanhol "El País", coordenada pelos professores Pablo Ortellado e Esther Solano, mas sem dúvida ela oferece um norte para o curso da política brasileira bem como a desenvolvida no Mato Grosso do Sul. É bem provável que uma pesquisa realizada com os manifestantes do nosso Estado viesse a apresentar resultados muito semelhantes.
Muita terra para pouco índio ou muita terra para pouco fazendeiro?
Aproxima-se o dia da votação da PEC 215. Essa provável mudança na Constituição do país transfere do Poder Executivo para o Congresso o poder de demarcação de terras para indígenas. Em termos práticos - não existirão mais terras demarcadas para índios após a aprovação desse projeto. Mas há ainda outros interesses pairando nesse projeto. Pretende abrir exceções ao usufruto exclusivo dos povos indígenas, como arrendamentos a não índios (por exemplo, as terras dos Kadiwéus), permanência de núcleos urbanos e propriedades rurais e construção de ferrovias, rodovias e hidrovias. Busca também revisar os processos de demarcação em andamento, assim como impedir a ampliação de terras já demarcadas. Há ainda o risco da segurança das atuais terras pertencentes aos indígenas que não estão sob o foco de litígios. Em suma, é um projeto da bancada ruralista para atender seus pleitos e anseios.
Os preconceitos contra os índios vicejam incentivados por interesses inconfessáveis de se apropriar de suas terras. Divulgam que existem índios de verdade e falsos índios. Os não legítimos seriam aqueles que falam português, assistem televisão, usam celulares, gostam de andar com carros e moram próximos a uma cidade. Na lógica interesseira daqueles caberia indagar se são brasileiros aqueles que falam inglês, visitam os Estados Unidos, preferem rock ao samba e gostam de torcer por times do futebol europeu?
A outra ideia preconceituosa é a de que o sonho dos índios é o de viverem em nossas "maravilhosas favelas e periferias urbanas", com esgoto serpenteando nas portas das residências e a polícia dando tiro até na sombra, à custa de Bolsa Família e cesta básica. Um paraíso para a "civilidade" dos povos indígenas. Seria o ápice da evolução - de índio falso a pobre favelado. São com preconceitos como esses, disseminados e manipulados, que tentam transformar os indígenas em algo semelhante a "estrangeiros nativos". Algo impensável - os que estavam dentro, da noite para o dia, viram os "de fora". Xenofobia invertida. Só no Brasil encontra eco e espaço.
Além do reles preconceito, há o acalorado debate pela quantidade de terra e o número de indígenas e de fazendeiros. Segundo o Censo de 2010, há 517 mil índios aldeados habitando 107 milhões de hectares, o equivalente a 12,5% do território nacional. Mas, onde estão essas terras? Mais de 98% estão situadas na Amazônia Legal e, portanto, menos de 2% da extensão territorial brasileira ocupada por todos os demais povos indígenas que não sejam amazônicos. Essa é a versão numérica do debate em prol dos índios. Para o lado dos fazendeiros também há números para discutir. O Cadastro do Incra mostra que apenas 130 mil grandes propriedades rurais concentram quase 50% das terras particulares cadastradas. E pior ainda, 176 milhões de hectares estão destinados a cupins e calangos - são improdutivos.
Há excessiva atenção da imprensa para os protestos nas ruas. Quando são os índios que ocupam os espaços públicos, tornam-se invisíveis. Ou viram vagalumes, um rápido piscar nas telas e desaparecem. A dor, a morte e os anseios indígenas quase não existem. Nesse embate que se eterniza, entre índios e fazendeiros, só os cofres do governo federal têm a ganhar. Só os políticos, de ambos os lados, estão satisfeitos com a perenidade da disputa.
A democracia hollywoodiana e os exageros no conflito entre índios e fazendeiros.
Assistiu “007 – Cassino Royale”, ou qualquer outro filme, onde aparece um personagem com uma arma que têm um silenciador que não faz nenhum barulho? Saiba que é um grande exagero. Um silenciador só serve para que os gases da ignição da pólvora da bala possam esfriar e se dissipar diminuindo um pouquinho o som da explosão. A redução do barulho não é tão grande como Hollywood quer fazer crer, em média diminui 30 decibéis, o que equivale a 20% do total. Isto mesmo, o silenciador só reduz 20% do som do tiro.
A pergunta pode parecer ingênua, mas será que os fazendeiros em litígio com os índios pretendem comprar armas com silenciador de Hollywood? A ideia é se defender das invasões atirando em centenas de índios com armas que possam não fazer barulho? E os indígenas que esmurraram os seguranças do Palácio do Planalto, na manifestação contra uma pretensa minuta de um fantasmagórico decreto do Ministério da Justiça, serão presos com armas com os silenciadores de Hollywood?
A democracia têm pedaços de seu filme rodados em Hollywood. Sempre foi assim. Os exageros estão no cerne da benfazeja democracia. Só não é aceitável outro exagero cinematográfico que é a transformação de catchup em sangue. Qualquer campanha, de índios ou de fazendeiros, deve ter como limite o lema: “Sem sangue, sem catchup”. Como também imaginar que é possível alguém cair de um avião sem paraquedas e ser salvo. Não, não é possível, por mais que o Ministério da Justiça deseje, os índios e fazendeiros do Mato Grosso do Sul estão caindo sem paraquedas. A explicação é física. Se uma pessoa de 85 quilos caísse de uma avião a 3,6 km de altura, o “salvador” teria no máximo 10 segundos para pular do avião atrás de quem caiu. Mesmo que, por um milagre, a alcançasse, seria impossível segurá-la, pois estaria a 200 km por hora quando levasse o tranco, muito forte, da abertura do paraquedas. A conta piora mais quando temos 80 fazendeiros e centenas de índios caindo sem paraquedas. O “heroico” Ministro da Justiça não conseguirá virar Super-Homem.