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Educação e Tecnologia

MS paga maior salário para professor, mas tem um dos piores ensino do País

Secretário de Educação acredita em melhora no próximo Ideb, que trará resultado pós-pandemia

Por Aline dos Santos e Ana Paula Chuva | 05/08/2024 13:50
Estudantes da rede estadual de ensino durante aula. (Foto: Henrique Kawaminami)
Estudantes da rede estadual de ensino durante aula. (Foto: Henrique Kawaminami)

Em Mato Grosso do Sul, apenas um a cada 10 alunos que concluíram o Ensino Médio tinham aprendizagem adequada em Matemática. A situação é só um pouco melhor em Língua Portuguesa: 4 a cada dez estudantes.

Os dados ajudam a construir o preocupante mosaico da Educação no Estado, mas a situação é ruim em todo o País. O retrato mostra que avançamos na remuneração dos professores, Mato Grosso do Sul paga o maior salário do Brasil, mas o ensino patina quando se analisa indicadores.

Se em MS, apenas 39% dos concluintes do Ensino Médio tinham aprendizagem adequada na disciplina de Língua Portuguesa, a média brasileira foi de 37,1%. Em Matemática, o percentual foi de 9,8% no Estado, enquanto que a média no Brasil ficou em 10,3%.

Especialista em Educação, Daniel Martins, mestre em Educação pela Framingham University (Estados Unidos) e diretor da Escola Harmonia, afirma que Português e Matemática são disciplinas fundamentais.

A escolha por estas disciplinas se dá pois, no caso de Português, ela é a disciplina base para todas as outras. Ou seja, sem estar devidamente alfabetizado e capaz de interpretar textos de acordo com a expectativa de aprendizagem relativa a cada idade, aluno não é capaz de aprender História, Geografia, Matemática e nenhuma outra disciplina. Já a avaliação em Matemática se dá pois ela é a base para todas as demais disciplinas de exatas, como por exemplo Física e Química”, afirma Daniel.

O levantamento foi divulgado pelo projeto “Todos pela Educação”, que compilou microdados do Saeb 2019 (Sistema de Avaliação da Educação Básica). De acordo com o MEC (Ministério da Educação), o indicador permite que as redes avaliem a qualidade do ensino oferecido aos estudantes.

Os melhores resultados foram no Espírito Santo e no Distrito Federal. O último Saeb foi realizado em 2023, mas a publicação dos resultados finais foi adiada de junho para 14 de agosto deste ano. A rede estadual de ensino tem 17 mil professores, 191 mil estudantes e 349 unidades escolares em Mato Grosso do Sul.

Salário versus qualidade

Estudantes da rede estadual de ensino em sala de aula. (Foto: Bruno Rezende/Arquivo)
Estudantes da rede estadual de ensino em sala de aula. (Foto: Bruno Rezende/Arquivo)

Mato Grosso do Sul paga o maior salário do Brasil aos professores - R$ 12.380 por 40 horas semanais - mas o melhor resultado no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) está no Paraná. O recorte do levantamento da reportagem é sobre o Ensino Médio da rede estadual.

O último resultado disponível do índice foi publicado em setembro de 2022 pelo MEC. No Ensino Médio, etapa que antecede a busca por vaga no ensino superior, MS teve resultado de 3,7. Desta forma, ficou em 18º no ranking nacional. O Ideb trouxe dados de 2021, período ainda do ensino remoto imposto pela pandemia de covid.

Já o melhor desempenho foi do Paraná, que obteve 4,6 no Ideb do Ensino Médio. A segunda melhor colocação ficou com Goiás (4,5).

O índice é resultado do cruzamento de informações das notas de Língua Portuguesa e Matemática com os números de alunos aprovados em determinado ano. Assim, o Ideb representa um termômetro da Educação. As maiores taxas do índice correspondem a uma melhor qualidade de ensino.

De acordo com o titular da SED (Secretaria Estadual de Educação), Hélio Daher, Mato Grosso do Sul tem esperança de que o novo Ideb, a ser publicado ainda em 2024, mostre melhora, já retratando o cenário do pós-pandemia.

Hélio Daher é secretário estadual de Educação. (Foto: Alex Machado)
Hélio Daher é secretário estadual de Educação. (Foto: Alex Machado)

O melhor salário começou a ser pago quando o último resultado do Ideb saiu. E todo investimento em Educação é a médio e a longo prazo. Mas não é só o salário, teve investimento em infraestrutura, formação. Uma série de ações para melhorar a aprendizagem. A melhora no Ideb é uma consequência. O Estado do Paraná não reprova aluno. Em Mato Grosso do Sul, aluno que não aprende reprova”, afirma Daher.

No orçamento de 2024, Mato Grosso do Sul projetou receita de R$ 25,4 bilhões e destinou a fatia de R$ 3.489.723.600,00 para a Educação. “Estamos reformando mais de 150 escolas e parte já está pronta. Boa parte do orçamento vai para infraestrutura. Como dedicamos muito do orçamento para a folha de pagamento, sobra menos para investimento. Mas estamos fazendo um bom uso dos recursos”, diz o secretário de Educação.

A reportagem questionou a Fetems (Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul) por que o maior salário aos professores não se traduz em melhor desempenho no Ideb. Para a federação, o índice não é apenas definido pelo trabalho do professor.

"O Ideb é uma somatória de muitas variáveis, não é definido apenas pelo trabalho do professor em sala de aula, um dos pontos mais críticos nesta medição é a questão da evasão escolar, que teve um aumento expressivo quando foi implementado pelo governo do Estado o projeto de Escola de Autoria (tempo integral do Ensino Médio), chegando em algumas escolas a 50% de redução do número de alunos", informa a federação.

Sobre salário, o sindicato aponta a diferença entre a remuneração dos docentes concursados e convocados. "Outro ponto a destacar é a redução do salário dos professores convocados que hoje recebem 40% menos que o professor efetivo para desenvolver a mesma função".

Quanto ao Ensino Médio, o modelo aprovado em 2017 teria, na visão dos professores, precarizado os conteúdos, com a redução do número de horas das disciplinas do núcleo comum (Português, Matemática, Física), de 2.400 horas para 1.800 horas.

"Também os itinerários formativos e os projetos de vida, existentes neste projeto, não atendem uma proposta pedagógica que realmente prepara os alunos para as próximas etapas de ensino, que resulta numa formação minimizada, tanto que o projeto está sendo revisto para 2025, propondo o aumento de horas do núcleo comum, em uma contrarreforma", pontua a Fetems.

“Acaba sendo mais fraco”

 Heloísa Marques cursa o 2º ano do Ensino Médio na rede estadual. (Foto: Marcos Maluf)
 Heloísa Marques cursa o 2º ano do Ensino Médio na rede estadual. (Foto: Marcos Maluf)

Os estudantes que cursam o Ensino Médio na escola pública afirmam que vão buscar reforço com cursinho pré-vestibular particular.

"Vou fazer cursinho junto com o terceiro ano porque o ensino público, apesar de bom, acaba sendo mais fraco do que o privado", diz Heloísa Marques, 16 anos, estudante do 2º ano do Ensino Médio.

Para ela, o atual modelo de aulas, com a inclusão do ensino técnico, acaba reduzindo a carga horária das disciplinas “tradicionais”, que são cobradas em provas para ingresso no Ensino Superior. Os estudantes têm aulas do técnico três vezes na semana: às terças, quartas e quintas.

"É bom porque te ensina uma profissão, mas para quem quer fazer vestibular acaba prejudicando um pouco, porque tira tempo de aula de algumas matérias".

Aluna do primeiro ano do Ensino Médio, Maria Clara Veiga Barbosa, 16 anos, avalia que o novo modelo de ensino tirou tempo de aula de outras disciplinas, como História e Geografia.

“Mas acho que só a escola não é o suficiente. Vou procurar um cursinho quando chegar no terceiro ano para poder fazer o vestibular", diz a aluna, que pretende cursar Psicologia.

A estudante Maria Clarice quer buscar uma vaga em Medicina. (Foto: Marcos Maluf)
A estudante Maria Clarice quer buscar uma vaga em Medicina. (Foto: Marcos Maluf)

No 2º ano do Ensino Médio, Maria Clarice Guedes, 15 anos, conta que vai buscar uma vaga em Medicina. A estratégia, diante do curso tão concorrido, será fazer cursinho particular junto com as aulas na rede pública.

Maria já trocou em 2024 a escola do bairro pelo colégio Lúcia Martins Coelho, no Jardim dos Estados, mais próximo do Centro. “E gostei muito. Achei o ensino melhor do que na escola do bairro”.

“Não cobra que eles estudem”

A reportagem questionou a Secretaria Estadual de Educação sobre o quanto do orçamento de R$ 3,4 bilhões é destinado para a formação dos professores e como são as ações, mas não obteve resposta até a publicação da matéria.

Profissionais ouvidos pelo Campo Grande News, que não quiseram se identificar por temor de retaliação, são unânimes em destacar o avanço salarial, mas pedem mais capacitação e um deles critica ações para “salvar” alunos da reprovação.

“Aqui no MS, no fim de cada bimestre, tem uma semana do projeto chamado ‘Recuperar para Avançar. Às vezes tem aluno que faltou quase o bimestre todo, ou que não fez nada durante o período. Mas depois dessa semana, vai com notas boas.  A cobrança deveria ser dos dois lados, muito se cobra só do professor. O que mais prejudica é que o Estado não cobra que eles estudem, dão muitas oportunidades para os alunos atingirem a média. Se quiser passar em um concurso não tem que estudar?”, afirma docente, que trabalha em sala de aula há 11 anos.

Gráfico mostra porcentagem de alunos com aprendizagem adequada em MS.
Gráfico mostra porcentagem de alunos com aprendizagem adequada em MS.

Professora que leciona há 15 anos na rede estadual, trabalhando em escolas de Campo Grande, avalia que houve melhora significativa no salário, mas a formação estagnou. “Um bom incentivo seria disponibilizar especializações de pós, doutorado e mestrado. Com liberação do professor através de uma licença neste período e com a remuneração paralelamente. Caso contrário, é complicado dedicar-se com a correria nas escolas”, enfatiza a docente.

Professora há 24 anos no interior do Estado conta que ao longo dos anos encontra alunos visivelmente mais desanimados. “Acredito que causado por mudanças culturais, desestruturação e pouca participação familiar na vida escolar. Além disso, mudanças constantes nas políticas educacionais como o Novo Ensino Médio não trouxeram benefícios em relação à Formação Geral Básica. Os estudantes não se interessam por boa parte das disciplinas oferecidas: Itinerários Formativos, Projeto de Vida”.

Os desafios incluem recursos básicos, como acesso à internet, apontado como precário em cidades do interior. “Apesar de o salário ter melhorado, os professores são sobrecarregados, pois a maioria trabalha em muitas turmas, mais de uma escola e o tempo remunerado destinado ao planejamento e ao cumprimento das exigências burocráticas não é suficiente”.

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A professora aponta que a situação é causada principalmente pela matriz curricular oferecida pela rede. “Por exemplo, se a disciplina tiver uma aula por semana, o professor terá que trabalhar com 16 turmas para cumprir 20h (um período). Isso reflete na elaboração das aulas e avaliação, no desempenho do professor como um todo, em sua saúde física e mental e, consequentemente, gera má qualidade do ensino. Além disso, há turmas numerosas, problemas com indisciplina, agressividade e desinteresse dos estudantes”.

Maioria de convocados

Estudantes em escola da rede estadua de ensino. (Foto: Marcos Maluf)
Estudantes em escola da rede estadua de ensino. (Foto: Marcos Maluf)

Pesquisa do portal "Todos pela Educação", divulgada em abril deste ano, mostrou que 30% dos professores que atuam nas escolas estaduais são concursados. Mato Grosso do Sul é o sexto Estado com menor percentual de efetivos.

De acordo com titular da SED, Hélio Daher, há duas estratégias para mudar esse cenário. A primeira é a convocação de aprovados em concurso, enquanto que a segunda é para a redução de licenças dos professores, por meio de programa de acompanhamento psicológico. A validade do último concurso foi prorrogada por mais um ano.

Ainda segundo a pesquisa, Mato Grosso do Sul tem a maior diferença salarial entre concursados e temporários. Os professores contratados pela rede recebem R$ 25,60 por hora trabalhada, enquanto os efetivos têm salário de R$ 52,40 por hora: R$ 26,80 a mais.

A reportagem questionou a federação representativa da categoria sobre investimento na formação de professores, a resposta foi de que é preciso mais concurso. "A Fetems entende que o governo deveria realizar mais concursos públicos para efetivação de novo profissionais, pois o professor sendo efetivo, o investimento na formação continuada será melhor aproveitado, pois o professor se manterá na escola, sendo parte do quadro permanente do magistério".

Em relação aos desafios dos professores, a federação destaca que há reclamação geral sobre a necessidade de diminuir a burocratização no processo pedagógico nas unidades escolares. "Os profissionais se dizem assoberbados e esta questão pode causar o adoecimento psicológico nos profissionais de Educação".

“Falta elemento crucial”

Daniel Martins é mestre em Educação pela Framingham University. (Foto: Arquivo Pessoal)
Daniel Martins é mestre em Educação pela Framingham University. (Foto: Arquivo Pessoal)

Diante do panorama da Educação no Brasil, o especialista Daniel Martins destaca que falta um elemento crucial para a qualidade do ensino.

 “Infelizmente, no Brasil, de um modo geral, falta este elemento crucial de apoio aos professores: um currículo claro, preciso e com objetivos de aprendizagens bastante específicas. É claro que cada escola pode criar o seu currículo, de acordo com as diretrizes do MEC e de suas respectivas secretarias de Educação. Para que isso seja possível, é necessária uma formação específica, tanto para os diretores, quanto para coordenadores pedagógicos e professores. E aí reside outro elemento indispensável para o bom desempenho acadêmico: a formação profissional”.

De acordo com Daniel, a formação precisa ser feita de maneira constante e focada tanto na gestão de sala de aula quanto nos conteúdos específicos que cada professor deve lecionar.

“Por último, tão importante quanto os elementos que listei acima, está a participação dos pais na vida escolar dos filhos. Neste caso, tanto a mãe quanto o pai precisam acompanhar e orientar os filhos na vida de estudos. Existem inúmeras pesquisas que explicitam inequivocamente a importância da presença dos pais na jornada de estudos dos filhos”.

Analfabetismo funcional 

Ângela Maria Costa é doutora em Educação pela UFMS. (Foto: Izaías Medeiros)
Ângela Maria Costa é doutora em Educação pela UFMS. (Foto: Izaías Medeiros)

A doutora em Educação da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Ângela Maria Costa, alerta para o analfabetismo funcional. “Nós temos um índice muito alto no Brasil de analfabetos funcionais. Que são aqueles meninos que não foram bem alfabetizados, que não conseguem ler um texto decente. Leem, mas não entendem. E a Matemática tem tudo a ver com isso também. Porque se o aluno não entender a pergunta, ele também não faz a questão”.

Para a especialista, os indicadores retratam que a qualidade do ensino segue muito abaixo do que seria necessário. “A verdade sobre o Ensino Médio é que ele filtra toda a Educação Básica. E nós estamos com essa avaliação mostrando que o ensino nosso está muito abaixo do necessário. Não existe ainda uma Educação de qualidade no Brasil. A gente vê muita evasão dos jovens por conta da pandemia. E esse foi um problema que agravou mais ainda o que já estava grave. Nós temos um descompasso do Ensino Médio entre as escolas públicas e as escolas privadas. Existe uma desigualdade total. Tanto é que os alunos que cursam o Ensino Médio nas escolas privadas sempre conseguem os melhores lugares nas universidades públicas”, diz Ângela.

Apesar do salário para o professor na rede estadual de MS ser o maior do País, a doutora em Educação reforça que o profissional vai precisar de formação continuada. “O professor é aquele que não pode parar. É um profissional que tem que está sempre se adequando, estudando e se qualificando”.

O Campo Grande News solicitou informações para a SED (Secretaria Estadual de Educação) sobre comparativos de taxas de aprovação, dados sobre taxas de evasão escolar, que avaliações a pasta faz para os professores e o ranking da escolas estaduais com melhores resultados. Contudo, não recebeu respostas até a publicação da matéria.

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