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Artes

Para a amiguinha a quem Manoel ensinou ler dicionários, poeta sorriu em fotos

Paula Maciulevicius | 19/12/2016 07:15
Centenário do poeta que queria crescer para passarinho. (Foto: Letz Spíndola)
Centenário do poeta que queria crescer para passarinho. (Foto: Letz Spíndola)

"Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores".

Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu hoje, dia 19 de dezembro, em Cuiabá, de forma que não viu a hora e isso fazia tempo. 100 anos do poeta que queria crescer para passarinho e agora dorme entre flores.

As histórias de Manoel se passavam entre prosas no sofá da sala. (Foto: Letz Spíndola)
As histórias de Manoel se passavam entre prosas no sofá da sala. (Foto: Letz Spíndola)

As histórias de Manoel - Quando completou 90 anos, o amigo e companheiro de caminhadas e de prosa, Pedro Spíndola reuniu as manoelices num livro "Celebração das Coisas". Para o material, era preciso fotos que ilustrassem a alma do poeta. 

Amigo de longa data, da mesma forma em que Pedro batia à porta de Manoel, Manoel participava da vida de Pedro. E foi assim que o poeta pode ensinar como fazer do dicionário um livro de cabeceira para a "amiguinha Letícia".

A menina a quem ele ensinou como usar as folhas do livro do significado das palavras, o fotografou em casa para as folhas de Celebração das Coisas. 

À vontade em casa, Manoel até mostrou poesias "costuradas". (Foto: Letz Spíndola)
À vontade em casa, Manoel até mostrou poesias "costuradas". (Foto: Letz Spíndola)

"Manoel não sabia de nada. Nunca contava os meus projetos para ele antes de ter uma coisa mais ou menos garantida, para não ficar alimentando esperança", conta o amigo e jornalista Pedro Spíndola. 

O poeta concordou e pediu que Pedro lhe trouxesse o que ele só chamava de menina. "Uma boneca, traz uma boneca para mim". Bonecos, como são chamados os projetos de livros na editoração. 

E é nele que aparece, ao final das páginas da dedicatória do dicionário, datada de 12 de dezembro de 1991, à Letícia, filha do seu Pedro.

"Querida amiguinha Letícia, fiquei sabendo por seu pai que você já procura palavras no dicionário. Uma curiosidade em quem não fez 10 anos ainda, é um dom. Sendo eu um procurador de palavras no dicionário, desde pequeno, vou dar um conselho a você. Assim: cada vez que você buscar uma palavra neste dicionário, leia também as 3 que estão acima e as 3 que estão abaixo da palavra que você buscou. Desse jeito você vai aprender 7 palavras de cada vez. Isso vai criar em você um hábito cultural sadio. Um beijo do seu amigão, o tio Manoel.

A dedicatória que vinha junto do dicionário que Letícia ganhou quando menina e fez parte de livro.
A dedicatória que vinha junto do dicionário que Letícia ganhou quando menina e fez parte de livro.
Luz e poesia combinaram para fazer de Manoel na escada, foto de encanto. (Foto: Letz Spíndola)
Luz e poesia combinaram para fazer de Manoel na escada, foto de encanto. (Foto: Letz Spíndola)

"Me lembro de passar algumas tardes da minha infância na casa dele ouvindo histórias fantásticas e curiosidades tipo a origem das palavras. Sempre tive noção de quem ele era, porque meu pai nunca nos deixou esquecer a importância dele", narra a produtora cultural Letz Spíndola, de 31 anos.

Quando o livro apareceu, seu Pedro a chamou para fazer as fotos. "Ele achou que o Manoel se sentiria mais à vontade comigo, já que me conhecia desde criança e porque ele não gostava muito de tirar fotos", justifica. À época, Letícia tinha 21 anos. "É um orgulho e uma lembrança maravilhosa que está registrado nessas fotos. Sempre que alguém cita o Manoel de Barros ou sua poesia, me sinto feliz ali dentro de ter conhecido ele de tão perto".

E a tarde das fotos correu tal qual as visitas que Letz fazia ao poeta quando era criança. "Ele sempre foi muito querido comigo, muito atencioso e carinhoso", recorda. A foto preferida é a da escada, pela estética que reuniu luz e poesia num só registro. 

Os registros em casa, no sofá da sala e no escritório são o que dão rosto às poesias de Manoel de Barros. 

Manoel acreditava que se o nada desaparecer, a poesia acaba. Sobre este nada, tinha profundidades. 

Em novembro de 2014, aos 97 anos, o coração do poeta parou, depois de meses sem vontade de viver. Não foi doença que o transformou em passarinho, só mesmo a velhice, que lhe trouxe a falência múltipla de órgãos.

"Ninguém é pai de um poema sem morrer".

Não saio de dentro de mim nem pra pescar. (Foto: Letz Spíndola)
Não saio de dentro de mim nem pra pescar. (Foto: Letz Spíndola)
Palavra dentro da qual estou há milhões de anos é árvore. Pedra também. Eu tenho precedências para pedra. Pássaro também. Não posso ver nenhuma dessas palavras que não leve um susto. Andarilho também. Não posso ver a palavra andarilho que eu não tenha vontade de dormir debaixo de uma árvore. Que eu não tenha vontade de olhar com espanto, de novo, aquele homem do saco a passar como um rei de andrajos nos arruados de minha aldeia. E tem mais uma: as andorinhas, pelo que sei, consideram os andarilhos como árvore. (Foto: Letz Spíndola)
Palavra dentro da qual estou há milhões de anos é árvore. Pedra também. Eu tenho precedências para pedra. Pássaro também. Não posso ver nenhuma dessas palavras que não leve um susto. Andarilho também. Não posso ver a palavra andarilho que eu não tenha vontade de dormir debaixo de uma árvore. Que eu não tenha vontade de olhar com espanto, de novo, aquele homem do saco a passar como um rei de andrajos nos arruados de minha aldeia. E tem mais uma: as andorinhas, pelo que sei, consideram os andarilhos como árvore. (Foto: Letz Spíndola)
Tenho uma confissão: noventa por centro do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira. (Foto: Letz Spíndola)
Tenho uma confissão: noventa por centro do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira. (Foto: Letz Spíndola)
Meu avesso é mais visível que um poste. (Foto: Letz Spíndola)
Meu avesso é mais visível que um poste. (Foto: Letz Spíndola)
Invento para me conhecer. (Foto: Letz Spíndola)
Invento para me conhecer. (Foto: Letz Spíndola)
De tarde um dom de latas velhas se atraca em meu olho Mas eu tenho predomínio por lírios. Plantas desejam a minha boca para crescer por de cima. (Foto: Letz Spíndola)
De tarde um dom de latas velhas se atraca em meu olho Mas eu tenho predomínio por lírios. Plantas desejam a minha boca para crescer por de cima. (Foto: Letz Spíndola)
Eu queria ser lido pelas pedras. (Foto: Letz Spíndola)
Eu queria ser lido pelas pedras. (Foto: Letz Spíndola)
E agora que fazer com esta manhã desabrochada a pássaros? (Foto: Letz Spíndola)
E agora que fazer com esta manhã desabrochada a pássaros? (Foto: Letz Spíndola)
Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia. (Foto: Letz Spíndola)
Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia. (Foto: Letz Spíndola)
A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente. (Foto: Letz Spíndola)
A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente. (Foto: Letz Spíndola)
Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério. (Foto: Letz Spíndola)
Palavras Gosto de brincar com elas. Tenho preguiça de ser sério. (Foto: Letz Spíndola)
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