Para a amiguinha a quem Manoel ensinou ler dicionários, poeta sorriu em fotos
"Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores".
Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu hoje, dia 19 de dezembro, em Cuiabá, de forma que não viu a hora e isso fazia tempo. 100 anos do poeta que queria crescer para passarinho e agora dorme entre flores.
As histórias de Manoel - Quando completou 90 anos, o amigo e companheiro de caminhadas e de prosa, Pedro Spíndola reuniu as manoelices num livro "Celebração das Coisas". Para o material, era preciso fotos que ilustrassem a alma do poeta.
Amigo de longa data, da mesma forma em que Pedro batia à porta de Manoel, Manoel participava da vida de Pedro. E foi assim que o poeta pode ensinar como fazer do dicionário um livro de cabeceira para a "amiguinha Letícia".
A menina a quem ele ensinou como usar as folhas do livro do significado das palavras, o fotografou em casa para as folhas de Celebração das Coisas.
"Manoel não sabia de nada. Nunca contava os meus projetos para ele antes de ter uma coisa mais ou menos garantida, para não ficar alimentando esperança", conta o amigo e jornalista Pedro Spíndola.
O poeta concordou e pediu que Pedro lhe trouxesse o que ele só chamava de menina. "Uma boneca, traz uma boneca para mim". Bonecos, como são chamados os projetos de livros na editoração.
E é nele que aparece, ao final das páginas da dedicatória do dicionário, datada de 12 de dezembro de 1991, à Letícia, filha do seu Pedro.
"Querida amiguinha Letícia, fiquei sabendo por seu pai que você já procura palavras no dicionário. Uma curiosidade em quem não fez 10 anos ainda, é um dom. Sendo eu um procurador de palavras no dicionário, desde pequeno, vou dar um conselho a você. Assim: cada vez que você buscar uma palavra neste dicionário, leia também as 3 que estão acima e as 3 que estão abaixo da palavra que você buscou. Desse jeito você vai aprender 7 palavras de cada vez. Isso vai criar em você um hábito cultural sadio. Um beijo do seu amigão, o tio Manoel.
"Me lembro de passar algumas tardes da minha infância na casa dele ouvindo histórias fantásticas e curiosidades tipo a origem das palavras. Sempre tive noção de quem ele era, porque meu pai nunca nos deixou esquecer a importância dele", narra a produtora cultural Letz Spíndola, de 31 anos.
Quando o livro apareceu, seu Pedro a chamou para fazer as fotos. "Ele achou que o Manoel se sentiria mais à vontade comigo, já que me conhecia desde criança e porque ele não gostava muito de tirar fotos", justifica. À época, Letícia tinha 21 anos. "É um orgulho e uma lembrança maravilhosa que está registrado nessas fotos. Sempre que alguém cita o Manoel de Barros ou sua poesia, me sinto feliz ali dentro de ter conhecido ele de tão perto".
E a tarde das fotos correu tal qual as visitas que Letz fazia ao poeta quando era criança. "Ele sempre foi muito querido comigo, muito atencioso e carinhoso", recorda. A foto preferida é a da escada, pela estética que reuniu luz e poesia num só registro.
Os registros em casa, no sofá da sala e no escritório são o que dão rosto às poesias de Manoel de Barros.
Manoel acreditava que se o nada desaparecer, a poesia acaba. Sobre este nada, tinha profundidades.
Em novembro de 2014, aos 97 anos, o coração do poeta parou, depois de meses sem vontade de viver. Não foi doença que o transformou em passarinho, só mesmo a velhice, que lhe trouxe a falência múltipla de órgãos.
"Ninguém é pai de um poema sem morrer".