Rua é a segunda casa de Fernando, que luta por uma cidade mais interessante
No Dia Mundial do Teatro, pensar em teatro de rua na cidade é também pensar no criador do Teatro Imaginário Maracangalha
Em 2012, a caminho de um boteco antigo do Bairro São Francisco me perguntava de quem era a iniciativa de uma festa de rua tão “alternativa” para os modos de Campo Grande. Foi a primeira vez que me deparei com o sorriso de Fernando Cruz, tomado pelo suor e o calor do povo, que em meio aos tambores gritava no megafone sobre arte e ocupação de espaços públicos, detalhes pouco explorados na rotina da geração mais nova.
Hoje, no Dia Mundial do Teatro e do Circo, falar de teatro de rua é também lembrar do rosto de Fernando, ator, produtor cultural e professor de Artes, que começou o Teatro Imaginário Maracangalha que hoje batalha para levar teatro e entretenimento a diferentes pontos da cidade.
Fernando, de 55 anos, nasceu em Porto Alegre e é fã das artes desde criança. Na memória ele tem a ida ao Circo Vostok com os irmãos e a música de Dorival Caymmi cantada pelos palhaços no palco: “Eu vou prá Maracangalha, eu vou!”.
Referência na infância que deu nome ao teatro e impulsionou Fernando a estudar as artes. “Depois da ida ao circo, eu e os primos cantávamos no quintal e fazíamos as encenações dos números do palhaço. Depois vieram os contos da escola, eles eram acessíveis na minha infância e, com a vida adulta, eu fui indo atrás, fazendo oficinas para entrar de vez no teatro”.
Apesar de inúmeras oportunidades no palco, Fernando só sentiu completo com as ruas. “Entrei forte no teatro de rua através dos movimentos sociais e com as técnicas do Teatro do Oprimido, além de militar nas Federações de Teatro, movimento forte pela inserção do teatro com investimento do poder público nas ruas. Era um movimento muito politizado, sobretudo do teatro. Porém, maioria tem uma escolha por palco, mas eu senti uma necessidade de ir para rua, pela ocupação do espaço público e da criação estética desde espaço”.
A rua proporciona uma relação mais íntima com o público, discutindo não só questões políticas e humanas, mas também afirmando a importância do espaço público para o teatro. Com ascensão dos teatros fechados e privados, a rua para os artistas tornou-se um campo mais amplo de reflexões e discussões democráticas. Para Fernando é também um meio de lutar contra a imposição. “O teatro dentro dos movimentos me permite muito mais. É a nossa liberdade, afirmação da nossa existência e do ato dialético. Vivemos numa sociedade com hall de organização sustentado através do patriarcado, capitalismo e religião, mas a liberdade de expressão sempre foi a maior oposição a isso”.
Neste dia, Fernando comemora a vida, mas lamenta situações que queiram tirar de cena a arte. “Com a paralisação do Ministério da Cultura, isso nos levou a continuar com os festivais, mas sem muita intensidade. Depois temos a burocratização dos espaços públicos e praças sendo cercadas, tudo isso é um indicador forte da repressão”.
Ele lembra de projetos de teatro implementados junto a categoria que hoje estão fora de cena devido a falta de investimentos. “Não temos mais o prêmio Rubens Corrêa de Teatro e nem Circuito Sul-Mato-Grossense que circulou durante oito anos com espetáculos para o interior e fomentou a necessidade de um curso de Artes Cênicas em Campo Grande. Também já sofremos calotes que chegaram aos 5 milhões e acabou-se a transparência para seleção de trabalhos como no Festival de Inverno de Bonito e Festival América do Sul”.
Na visão do ator, há uma confusão sobre o papel do teatro de rua na cidade. “Acham que o que fazemos é baderna, porque incomoda o lado mais conservador da cidade”.
Paradoxo a isso é a necessidade imensa de arte para a população. “Temos o Femic (Fundo Municipal de Incentivo a Cultura) e o FIC (Fundo de Investimentos Culturais), fora isso não temos investimento em oficinas na periferia e não temos outras programações culturais promovidos pelo poder público. Uma população que carece de arte se depara com a violência. O número de jovens que a gente viu no Carnaval pedindo por lazer cultura é o termômetro da falta que faz a arte e a cultura na cidade”.
A arte muda perspectivas e, especialmente por isso, Fernando não abandona o barco. “A rua pode agregar pessoas, é um espaço de luta, de sobrevivência. Por isso, muitas vezes, a gente não pede a licença pra usar a rua, porque ela é nossa, antes de tudo. E o teatro pode mudar a vida de gerações e se ele existe a milhares de anos e ainda está se reinventando, continuaremos atuando, porque a rua é nossa”.
Formado em Artes Cênicas, Fernando é casado com Ana Capiné, produtora e melhor amiga do Teatro Imaginário Maracangalha composto também pelos atores Fran Corona, Ariela Barreto, Pepa Quadrini, Paulo Augusto e Moreno Mourão.
Ativo e atuante há 13 anos, o grupo é um dos poucos em Mato Grosso do Sul a disseminar arte de caráter social e político pelas ruas de forma independente.
Entre os espetáculos mais conhecidos estão “Areôtorare – O Verbo Negro e Bororo do Índio profeta” e “Tekoha – Vida e Morte do Deus Pequeno”, além de eventos culturais como Sarobá e Bloco Evoé Baco que fizeram o campo-grandense descobrir o valor de botecos antigos e praças da cidade.