Nunca Manoel de Barros deixou de atender ao telefone
As palavras saem meio borradas, mas mesmo assim ele conversa bastante e repete o quanto for necessário. Aos 95 anos, o senhorzinho de bigode atende mais uma das dezenas de ligações que tenho feito ao longo da vida de jornalista. Nunca Manoel de Barros deixou de atender.
Ele não usa celular. É na base do telefone fixo que tenho conversado há mais de 20 anos com o poeta. É a forma rápida de “trocar uma ideia” com o homem mais sensível, atencioso e sorridente que já conheci.
Mas mesmo que tentasse uma conversa frente a frente, não conseguiria, adverte o poeta. “Ando meio sem graça, não estou mais recebendo visitas”, responde quando a pergunta é a básica: “Como o senhor está?”
Parece pretensão minha, mas não encontro ninguém na cidade que tenha mais a dizer que Manoel de Barros. É claro que não ligo para perturbar o homem à toa, ou debater questões pessoais.
Já telefonei para falar sobre a questão indígena, para discutir comportamento e, é claro, para conversar sobre arte e sobre o Pantanal. Nunca Manoel pediu para desligar, sempre fui eu, constrangida pelo tempo “desperdiçado” por ele comigo.
Lembro que um dia, na década de 90, consegui até dividir o telefonema com alguns meninos de assentamento rural que formavam o grupo “Poetas do Cerrado” e tinham como sonho falar com Manoel. Por um bom tempo, os garotos se revezaram no telefone, alguns só para dizer oi.
Hoje, lá pelas 10 da manhã, procurei Manoel de Barros mais uma vez, desta vez para conversar sobre prêmio internacional conquistado pelo nosso grande poeta. Ao atender, uma das funcionárias da casa surpreendeu minha certeza. “Vou ver se ele vai atender, porque ultimamente não anda falando ao telefone”.
Tive sorte. Manoel não mudou.
O prêmio - Manoel de Barros é o primeiro autor brasileiro a receber o Prêmio de Literatura Casa da América Latina/Banif, instituído em Portugual há 7 anos. Venceu com a “Poesia Completa” (no Brasil, lançado pela editora Leya).
A homenagem hoje em Portugal não terá a presença de Manoel. No lugar dele seguiu a filha Martha, não por qualquer motivo preocupante, diz sorrindo o vencedor. “Não estou doente, estou velho, é só isso mesmo”, conta.
Os títulos e mais títulos conferidos não só pelas academias, mas por gente de todo tipo que encontrou na poesia de Manoel algo compreensivo e tocante, não parecem empolgar o poeta. “Fico feliz, mas é só outra viagem. O que mais me interessa mesmo é continuar escrevendo”.
E o lápis continua na mão. Sem sair de casa “para nada”, como resume o poeta, os dias no imóvel da rua Piratininga são de observação e escrita. “Ainda consigo”, ri o homem aparelhado para gostar de passarinhos.
Manoel escreve, escreve, mas já não são só poesias. É algo a mais ou a menos. Ele mesmo ensinou que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que produza em nós, não é.
E perto dos 100 anos, ele continua assim, tentando novos encantamentos. “Não sei dizer o que ando escrevendo, são ideias”, diz.
Nesta semana, Manoel conta que sentou para escrever poesia por agradecimento. Como não poderia ir até à Europa, deu o obrigado com rãs, formigas e brisas.
“Enviei o que escrevi pela minha filha Martha. Espero que eles tenham gostado”, comenta com verdadeira humildade. Leio as frases para o poeta e ele confirma em meio a uma gargalhada. "É minha. Totalmente minha".
“Fôssemos merecidos de água, de chão, de rãs, de árvores, de brisas e de graças! Nossas palavras não tinham lugar marcado. A gente andava atoamente em nossas origens. Só as pedras sabiam o formato do silêncio. A gente não queria significar, mas só cantar. A gente só queria demais era mudar as feições da natureza. Tipo assim: Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas da manhã. Ou tipo assim: Nós vimos uma formiga frondosa ajoelhada na pedra.
Aliás, depois de grandes a gente viu que o cu de uma formiga é mais importante para a humanidade do que a Bomba Atômica”, agradece Manoel aos portugueses.