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Comportamento

Não basta querer, para conseguir amamentar é preciso política pública

“Não existe isso da mulher amamentar em quatro meses. A cultura do desmame esmaga a gente de todos os lados”, diz Luciana Cafure

Alana Portela | 08/08/2020 09:21
Marcelinho e Hugo são parceiros na hora do tetê. (Foto: Arquivo pessoal)
Marcelinho e Hugo são parceiros na hora do tetê. (Foto: Arquivo pessoal)

A amamentação vai além da saúde pública e precisa de métodos mais efetivos para que nem mãe, pai e, muito menos o bebê, sofram ao fim da licença maternidade, quando o pequeno que não anda, não fala e depende apenas do leite materno, tem de ficar na escolinha ou com babá. São pelo menos três vidas envolvidas no processo de amamentar que necessitam de atenção, principalmente no primeiro ano após o nascimento.

O assunto vem à tona agora porque o mês intitulado "Agosto Dourado" é destinado à campanha em prol do aleitamento materno. No contexto de pandemia, as ações ficaram no meio virtual, e ainda mais longe da discussão necessária: de se criar políticas públicas que realmente incentivem a amamentação.

“Não existe mulher amamentar em quatro meses. O tema vai além da saúde pública, é uma questão política. Enquanto a ficha não cair, as políticas públicas com relação a isso não vão mudar”, destaca a médica Lucina Cafure, mãe do pequeno Hugo.

Há três semanas, Luciana retornou aos atendimentos para garantir a renda da família, porém sofre todos os dias ao ter que sair de casa e deixar o filho de nove meses.

“Foram seis meses de licença maternidade e mais três afastada por ser paciente oncológica. No total deram nove meses, mas digo com todas as letras que esse tempo não foi nem perto de ser suficiente. Não consigo imaginar como é sair da licença em quatro meses”, destaca. O tempo de 120 dias é o que a maioria das mulheres que trabalham na iniciativa privada conseguem de licença.

Luciana já teve sua história contada pelo Lado B. A primeira foi em 2015, quando contava nos dedos os dias para se casar Kelvin Felipe Gimenes da Silva. Em 2017, voltou a ser personagem de matéria após descobrir um câncer raro e lutar com unhas e dentes pela vida e pelo do sonho de ser mãe.

Ela engravidou no ano passado, e Hugo nasceu prematuro depois de um descolamento de placenta. “Nasceu abaixo do peso, com a boca pequena e tive dificuldade de amamentar. Por mais que a gente queira, esteja disposta e ame, ainda sim a dificuldade [com amamentação] é maior do que a gente possa mensurar”.

Luciana Cafure ainda no hospital e o marido Kelvin Felipe Gimenes da Silva segurando Hugo que tinha acabado de nascer. (Foto: Arquivo pessoal)
Luciana Cafure ainda no hospital e o marido Kelvin Felipe Gimenes da Silva segurando Hugo que tinha acabado de nascer. (Foto: Arquivo pessoal)

Nem mesmo o diploma de Medicina deixou Luciana preparada para essa nova fase da vida. “Fui descobrindo tudo. Não se fala de amamentação na faculdade, o máximo que aprendi lá, foi que o bebê mamava. Os colegas que fizeram meu pré-natal também não conversaram sobre isso comigo. Essa é a primeira coisa que estou mudando na minha conduta como médica, estou falando sobre o tema com meus pacientes”.

Após o nascimento de Hugo e a dificuldade de amamentar, Luciana e o esposo contrataram uma consultora em amamentação para ajudar, até pegar o jeito e conseguir dar de mama ao filho.

“Ser mãe é a coisa mais diferente, maravilhosa e assustadora. A experiência de amamentar é o desafio mais difícil da vida inteira e olha que tive câncer, fiz tratamento gigantesco, fiquei 15 dias internada, passei pela UTI [Unidade de Tratamento Intensivo] e não passa nem perto”.

Luciana segurando Hugo no colo ao lado do marido Kelvin. (Foto: Arquivo pessoal)
Luciana segurando Hugo no colo ao lado do marido Kelvin. (Foto: Arquivo pessoal)

Amamentar não está apenas ligado a sobrevivência do bebê, como também da família, que se vê privada de sono, e por mais que tenha lido e estudado sobre maternidade e amamentação, a realidade é muito diferente da teoria.

“A abordagem dos profissionais que lidam com as grávidas tem que ser mais clara sobre essas dificuldades, para que tire um pouco daquela coisa de glamour do bebê da novela. Não tem nada a ver com isso, é difícil”, destaca Luciana.

Para que tudo desse certo após o nascimento do filho, Luciana contou com o apoio do marido. “Se não fosse por ele, não teria conseguido amamentar porque o Hugo tinha muita dificuldade. Era o Kelvin quem me dava de comer e beber na boca, enquanto eu tentava alimentar nosso filho”.

O esposo é estudante, porém, com a pandemia do coronavírus, está passando mais tempo com o filho enquanto a esposa trabalha. “Enquanto trabalho em tempo integral fora, ele fica com o Hugo o tempo todo. Sentimos falta um do outro”.

Hugo sendo amamentado pelo pai, através de uma colher dosadora. (Foto: Arquivo pessoal)
Hugo sendo amamentado pelo pai, através de uma colher dosadora. (Foto: Arquivo pessoal)

Retorno – Um mês antes de retornar aos trabalhos, Luciana passou a se preparar. Determinou horários fixos para fazer a ordenha e deixar leite materno congelado para que o marido alimentasse o filho, por meio de uma colher dosadora, enquanto a mãe está fora.

No trabalho outro desafio é fazer a ordenha, já que não tem sala especial para as mães que ainda dão de mamar. “Não tem lugar para tirar leite e nem geladeira para isso, tenho que deixar na comum, onde todos guardam as marmitas. Isso é uma barra, principalmente em época de covid”.

Sem sala adequada, o jeito é esperar o movimento passar e trancar as portas do consultório de atendimento, esterilizar tudo com álcool e retirar o jaleco para iniciar a ordenha de forma manual.

“Ordenho de manhã e à tarde. Às vezes, fico cheirando uma roupinha do Hugo, coloco uma música que gosto para aumentar a produção de ocitocina. Tiro 100 ml por período, está sendo suficiente por conta da introdução alimentar. Congelo e meu marido dá para o bebê, que mama em livre disponibilidade”.

Rede de apoio – Além da informação, para poder amamentar o filho, Luciana fala sobre o quanto é preciso criar uma rede de apoio. “Digo que para criar uma criança precisa ou da mãe ou de uma tribo. Minha rede de apoio é muito boa e isso precisa ser construído antes. A mãe precisa fazer um enxoval de informações”.

Luciana amamentando Hugo ainda nos primeiros meses de vida. (Arquivo pessoal)
Luciana amamentando Hugo ainda nos primeiros meses de vida. (Arquivo pessoal)

Para a médica, o sonho “dourado” seria o prolongamento da licença maternidade, para as mães poderem dedicar mais tempo aos filhos. “Na Suíça a licença maternidade é dois anos e a mulher pode estender mais se tiver necessidade. Com isso, recebe menos, mas ninguém deixa de pagá-la”, exemplifica.

Como mãe e médica, Luciana também fala que a licença paternidade precisa ser revista. O período dos pais em casa, na maioria das vezes, dura menos de uma semana. “A licença do pai lá na Suíça é de seis meses a um ano. O primeiro ano do bebê é tão especial e intenso, que a família precisa estar unida”, frisa a mãe do Hugo.

Versão do pai – Além da dificuldade da esposa, o fim da licença maternidade também está sendo um desafio para Kelvin. Ele e o filho estão tentando se adaptar à nova rotina,  mesmo com a preparação começar um mês antes da volta ao trabalho de Luciana.

“Sinto que, às vezes, não sou suficiente. Ele depende da mãe e do famoso tetê. Como ela voltou a trabalhar recente, Hugo chora muito na ausência dela, sofre. Me sinto triste por não poder fazer mais nada por ele, sabe?”, diz o pai inconformado com a situação atual da família.

Kelvin relata que ser pai é o sonho de uma vida. “O sentimento é extraordinário. Ter uma pessoinha com as características que você é mais apaixonado no mundo todo. Afinal, se parece comigo e com minha esposa. Agradeço todos os dias a oportunidade que tenho de passar 24 horas com ele”.

Luciana mostrando o leite que conseguiu retirar do peito e armazenar num recipiente para o filho. (Arquivo pessoal)
Luciana mostrando o leite que conseguiu retirar do peito e armazenar num recipiente para o filho. (Arquivo pessoal)

Falar da paternidade enche o pai de alegria e orgulho, porém também o deixa reflexivo. “Hoje, me pergunto se vamos ter mais um filho porque a dificuldade é grande”.

O coração do pai se parte ao meio quando vê o filho chorar pela falta da mãe. “Pede pela ‘mamam’. Hoje não aguentei, chorei largado, contando para minha esposa a situação em que meus sentimentos se encontram. Um misto de paternidade extrema. Ele é minha vida, largo tudo pelo Hugo”.

Rotina – Quando Luciana sai de casa é Kelvin toma conta de tudo. O despertador toca às 6h, para que dê tempo de a esposa entrar no trabalho às 8h. “Ela amamenta o Hugo até às 7h, mais ou menos. Aí começa o dia”.

Tem vez que Hugo junto, assim que a mãe levanta da cama. “Quando isso acontece, fica acordado até ela sair e chora muito quando a mãe sai. Demora para eu conseguir fazê-lo se distrair”, relata.

O casal é voltado a criação Montessoriana, deixa o filho livre para brincar e curtir a infância, mas sempre atento para que nada aconteça ao pequeno. Pela pouca idade, também evitam brinquedos digitais, que possam acarretar em consequências no futuro, como o celular.

“Brincando no chão e fazendo atividades ele se distrai. Brinca um pouco mais e chama pela mãe novamente, aí ofereço o leite materno. Aqueço em banho maria para descongelar e é mais seguro em termos alimentares. Quando toma o leite, fica muito feliz”.

O pai relata que depois de mamar, o filho chora chamando pela mãe novamente. “Aí vamos passar pela casa. Às vezes, peço socorro à minha sogra que mora na quadra da frente”.

O leite sendo aquecido em banho maria (Foto: Arquivo pessoal)
O leite sendo aquecido em banho maria (Foto: Arquivo pessoal)

Almoço – Luciana retorna para casa no horário do almoço, para poder matar a saudade, amamentar o filho e ainda almoçar em poucas horas. “Aí ele aproveita a mamãe dele e mama bastante. O Hugo relaxa quando ela está por perto”.

No entanto, por conta da correria do dia a dia, nem sempre o pai consegue preparar o almoço do casal. “Fazemos mágica.  Às vezes, consigo fazer uma proteína e ela finaliza com uma massa, por exemplo. Mas, quando ela retorna ao trabalho, começa tudo de novo, choro”.

Após encerrar o expediente, Luciana retorna para a casa e descansa com o filho. “Tem vez que ele está muito cansado e eles vão dormir às 19h. Nisso, ele só acorda às 7h do dia seguinte".

Medidas – Assim como para Luciana, Kelvin também destaca a importância desse período para a família e fala sobre a falta de apoio governamental durante a licença maternidade e paternidade.

“Que aumente o prazo e receba um valor de ajuda por mês porque o seu salário reduz muito. O da minha esposa na licença, ficou só o base. Ela não tinha produtividade pois estava em casa cuidando de um bebê. Tinha que ter um auxílio por mês para custear alguns remédios, alimentos”.

Para o pai, o tema “aleitamento materno” deve ser mais discutido. “Debatido envolvendo todas as fases. Nunca imaginei minha esposa com tanto leite que empedrava no peito, mas meu filho não sem conseguir mamar [nos primeiros meses]. Só mamava por uma sonda que servia de canudo. Não estávamos preparados pra isso”, pontua.

Agosto dourado - Desde o dia 1º deste mês algumas ações sobre o aleitamento materno foram realizadas. A enfermeira e consultora em aleitamento materno, Elise Angeline Dias e a ginecologista e obstetra, Rubia Loureiro organizaram o Mamaço Virtual. O evento on-line foi realizado pelo aplicativo Zoom e contou com participações de mães de vários locais.

Foram cinco encontros para trocar experiências, falar sobre a importância do amamentação e preservação do meio ambiente. "A amamentação é envolta de mitos e informações que nem sempre ajudam. Sentimos muita gratidão nas mães que puderam divulgar seus relatos, afinal, nem sempre a realidade é igual à expectativa", diz Elise.

O tema desse ano, que une o incentivo, a proteção e a promoção da amamentação com a preservação do meio ambiente, mostrou o quanto de 'marcas' um bebê não amamentado deixa na natureza, como: rótulos, latas, tampas, se referindo às fórmulas.

Sobre a importância da amamentação para a mãe, ela afirma. "No pós parto imediato, na chamada hora de ouro, possibilita uma involução uterina mais rápida, prevenindo sangramentos, além de colaborar para a consolidação do vínculo entre mãe e recém nascido".

Para o bebê, o colostro da mãe é a primeira vacina, por conta de sua composição imunológica. "O leite materno continua protegendo de diversas patologias, como num sistema de informações, no qual a saliva do bebê mostra para o sistema imunológico da mãe do que ele precisa se defender", explica Elise.

Para a mãe da reportagem, não bastou só a vontade de amamentar, como também muito estudo e, acima de tudo, persistência. “A cultura do desmame nos esmaga de todos os lados e a gente tem que resistir muito para poder amamentar, ainda mais depois do 6º mês”, destaca a médica Luciana Cafure.

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