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Comportamento

Pelo visto, "novo normal" e "é só rinite" ainda farão parte de 2021

Se depender das palavras e expressões verbalizadas em 2020, o "livro" 2021 começou a ser escrito nas mesmas páginas do anterior

Raul Delvizio | 01/01/2021 09:31
Com a mesma perspectiva pandêmica do ano passado, será que é possível imaginar um futuro mais otimista nas "palavras" de 2021? (Foto: Jeremy Beck/Unsplash)
Com a mesma perspectiva pandêmica do ano passado, será que é possível imaginar um futuro mais otimista nas "palavras" de 2021? (Foto: Jeremy Beck/Unsplash)
A linguagem é a morada do ser".

Quando o filósofo alemão Martin Heidegger afirmou isso no século passado, a sociedade moderna de 1918 passava pela Gripe Espanhola, que na época tirou a vida entre 20 a 50 milhões de pessoas nos anos que sucederam. Se comparado ao novo coronavírus (pouco mais de 1,8 milhão de mortes), fica claro que somos "fichinha" em número. Porém, de lá pra cá, é algo que não se enxerga e nem ao menos se imagina que tem o poder de continuar a nos "assombrar": o eco das palavras.

"Nesta pandemia, sinto que ainda há um pânico desencadeado pelo uso das palavras, pela mensagem de medo. Não só a oralidade que isso ficou bem claro, mas nas imagens de um novo mundo com hábitos adaptados e mudança de comportamentos", considera Ana Bernadelli, escritora e poetisa campo-grandense.

São frases afirmativas – e de poder – como "não saia de casa", "use máscara", "lave as mãos" e "passe álcool em gel" que constituíram o "livro textual" de 2020. Quem diria que algum dia falaríamos tanto em "quarentena" ou até mesmo utilizaríamos "lockdown" para designar a prisão que virou as nossas casas no último ano?

Nuvem de palavras mostra o quanto a covid-19 modificou nossas vidas (Foto: Reprodução)
Nuvem de palavras mostra o quanto a covid-19 modificou nossas vidas (Foto: Reprodução)

No entendimento de Ana, o mundo passa, portanto, por duas pandemias. "Mais do que só pensar em saúde, o coronavírus ficou travestido de política, de tomar partido, de respeitar ou não os protocolos da pandemia. E isso deixou o cenário ainda mais perigoso porque parou numa falta de valorização da vida", acredita. Exemplos de termos como "covidiota" (aqueles que desacreditam na pandemia) e "cloroquiners" (aqueles que insistem no tratamento pelo uso do medicamento cloroquina) marcaram o ano que acabou de terminar.

E hoje, dia 1º de janeiro de 2021, começa mais um capítulo da história da pandemia do novo coronavírus. Não somente porque a vacina já está confirmada no seu "sumário", mas o evento instalado pela covid-19 transgrediu o tempo, as fronteiras, a vida humana. Se já estávamos acostumados ao "novo normal", que venha então o "2020: parte II". Utilizando a mesma expressão, é como o antropólogo Guilherme Passamani também interpreta sobre a chegada do novo ano.

Acostumado ao "novo normal", seja bem-vindo então ao "2020: parte II" (Foto: Engin Akyurt/Unsplash)
Acostumado ao "novo normal", seja bem-vindo então ao "2020: parte II" (Foto: Engin Akyurt/Unsplash)

"Eu diria que estamos no mesmo 'mar pandêmico', mas com barcos absolutamente diferentes. Aliás, muitas pessoas sequer possuem boia. A pandemia revelou, mais uma vez, as enormes desigualdades sociais na sociedade brasileira. As pessoas privilegiadas, nas quais eu me incluo, nós sim podemos rever conceitos, buscar o simples, mudar atitudes, trabalhar de casa, fazer viagens hiper seguras. Mas o grosso do povo brasileiro não. Simplesmente, seguiram com a mesmíssima vida, usando máscara e passando álcool em gel para não perder seus empregos", opina o professor do curso de Ciências Sociais da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).

"E o que falar do presidente? É impossível não lembrar de 'é só uma gripezinha' ou 'eu não sou coveiro'. Elas sinalizam o projeto completamente despreparado que governa o Brasil e leva aos quase 200 mil mortos", acrescenta.

"É só uma gripezinha" – frase que acabou caindo por terra (Foto: @younis67/Unsplash)
"É só uma gripezinha" – frase que acabou caindo por terra (Foto: @younis67/Unsplash)

"Pior do que está não fica" – Entretanto, foi o natural bom humor que também serviu de válvula de escape durante o isolamento social e um drible na tensão do vírus por meio da oralidade. Quem aí já ouviu a explicação "é só rinite!" após uma tosse ou espirro alheio? E o "já faço parte da mobília", comentário ácido mas sincero justamente pelo ano trancado cada um em suas casas. Tal como uma planta, teve gente que também "criou raiz".

"O bom humor é uma das armas mais utilizadas pela sociedade brasileria para driblar as amarguras do cotidiano. Não é por acaso que fazemos o carnaval, um dos maiores espetáculos feito de brincadeiras e alegria. Nós sabemos tanto cantar as nossas dores quanto rir dos nossos horrores. Isso nos permitiu não sucumbir na tristeza profunda da covid-19. Momentos de grandes tensões despertam a potência criativa – e o humor é uma de suas facetas. Porém, nada disso ignora ou subestima a tragédia humanitária que vivemos globalmente", julga Passamani.

Do ponto de vista pessoal, Guilherme compartilha o solene "seu microfone está desligado" em função do seu trabalho, que nos últimos meses só funcionou via sistema remoto. Já para a Ana Bernadelli, o abatimento causado pelo "luto" é eterno. Porém, mesmo com as adversidades, a poetisa acredita no poder da frase "aprendi a dar valor às coisas simples".

"A pandemia veio como um aprendizado. Principalmente o individual, de repensar nossos valores, refletir sobre a vida e voltar a fazer nossos monólogos internos. Prestar atenção na natureza, nos detalhes, nas coisas simples e que nos fazem feliz. A vida do 'velho normal' era uma correria danada – e de repente tudo parou. Particularmente, reaprendi a ter paciência e ser mais tolerante", admite.

Não dá pra saber se vai ser neste 2021, mas que dias melhores ainda virão, isso há de ser uma certeza (Foto: Gabriel Lamza/Unsplash)
Não dá pra saber se vai ser neste 2021, mas que dias melhores ainda virão, isso há de ser uma certeza (Foto: Gabriel Lamza/Unsplash)

"Dias melhores virão" – Para Guilherme Passamani, não. "Nossa população parece atabalhoada, há muitos 'Brasis' em voga. Eu não acredito em novas condutas sociais pelo ano que passamos, afinal os exemplos são inúmeros. A irresponsabilidade é política, mas sobretudo no cotidiano, na vida em comunidade. Essa espécie de percepção de uma imunidade compulsória e a compreensão de que a doença afetará apenas o outro tem sido a nossa pior companhia. Mudar isso envolve uma vontade profunda que, se duvidar, nem há de começarmos. Uma grande pena", lamenta.

Já para Ana, 2021 se trata de irmos, aos poucos, construindo os novos tempos. "É aplainar os caminhos. E saber que a vida pós-vacina vai ser completamente diferente, e tão tensa quando a de agora. A vida vai continuar, isso é certo, mas somente se houver solidariedade, tolerância, empatia. A esperança é um sentimento cotidiano. Não se pode lançá-la como uma coisa futura. É a rotina, é o aqui e agora. E a palavra direciona para tudo isso se souber usá-la", finaliza.

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