Assim como o Rio Miranda, amor de 2018 "secou" e pescadores temem perder renda
Seca enfrentada atualmente preocupa comunidade e tem ligação com bacia hidrográfica inteira
A última vez que o Rio Miranda tocou a ponte que o atravessa no município de Bonito foi em 2018. Ano de cheia histórica, em que ribeirinhos tiveram que desocupar casas e contar com a força física para carregar pertences até as partes mais altas.
Francesco França era pescador e marido de Lidiane de Jesus na época. De barco, sozinho, se aproximou da ponte e, em pé, escreveu à tinta o nome do casal.
"Naquele dia, ele não pescou porque o rio estava muito cheio. Só tinha saído para dar uma volta. Escreveu, tirou foto e me mostrou", lembra Lidiane.
Mas o casamento acabou e o amor eternizado ali serviu só como marcador do nível que o rio não atingiu mais, o que tem preocupado as famílias que têm no Miranda a base de tudo.
Antes e agora - Nem Lidiane, nem Francesco moram mais à beira do rio. A reportagem falou com ela, que hoje é cabeleireira e mora no município de Anastácio. O casamento durou três anos e ela não falou sobre o término, apenas acrescentou que não sabe onde o ex mora.
A reportagem tentou por vários dias falar com Francesco, que não retornou aos contatos. Nas redes sociais, foi possível identificar que ele mora atualmente em Bonito e está noivo.
Daquele local, Lidiane mantém outras lembranças. Todo final de semana ela volta para visitar a família na águas do Miranda e revê o lugar onde cresceu.
As melhores memórias do tempo de criança têm o Rio Miranda como cenário. "Lá a gente brincava, pescava, tomava banho", conta. Comparando o que via antes com o que vê em 2023, aos 24 anos, diz que o Rio Miranda não é mais o mesmo. "Está mais baixo e não tem mais as cheias de antes", conta.
Outra novidade são barrancos de areia, que revelam processo de assoreamento no rio a cada época de seca, contam Lidiane e também o pescador profissional Bruno Rodrigues, de 33 anos.
A infância de pescarias com o pai, de quem Bruno herdou a profissão, era diferente. "Pelo que ele fala e eu testemunhei, hoje tem 50% menos peixes no rio", fala.
Bruno, que já trabalhou na medição do nível do rio como contratado da Ana (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), fala que a seca deste mês de março está acontecendo "na época errada". Os ciclos naturais de chuvas estão desregrados e provavelmente atrapalharão a pesca nos próximos dois anos. "Como os pescadores antigos explicavam e a gente aprendeu, não tem desova se o rio não enche. Peixe de escama cresce num tamanho bom para pesca em 1 ano e o de 'couro', em 2 anos. Então, você calcula o resultado dessa seca de agora", explica.
O chefe - "Falamos aqui que ele é o nosso 'patrão'. Todas as famílias e o turismo da região dependem da pesca. É essa água que também bebemos após ser tratada", afirma Jaqueline dos Santos que cresceu à beira do rio e hoje é professora e presidente da Associação de Mulheres Ribeirinhas da comunidade do distrito Águas do Miranda, que vive nas proximidades.
Aos 39 anos, ela atesta que as cheias de 30 anos atrás não se repetem nos últimos anos e que as mulheres têm buscado fontes alternativas de renda, enquanto maridos pescadores se voltam mais ao turismo. Vivem lá cerca de 200 famílias, segundo Jaqueline.
"Se optarem pela pesca extrativista para vender os peixes, precisam descer muito mais o rio hoje em dia e gastam mais combustível e gelo. Então, eles têm trabalhado em algumas épocas do ano como guias de pesca para turistas porque não precisam ir tão longe, e as mulheres trabalham com artesanato, culinária e também turismo para completar a renda familiar", ela explica.
Seca histórica - Este mês de março, que normalmente é de cheia para o rio, não trouxe as chuvas volumosas esperadas. A organização SOS Pantanal, que realiza pesquisa junto aos ribeirinhos, registrou a situação e publicou nas redes sociais um vídeo que viralizou (assista abaixo).
Nele, o pesquisador Gustavo Figueirôa relaciona o que está acontecendo como consequência do desmatamento e degradação de áreas de Cerrado, Mata Atlântica e do Pantanal, falta de curvas de nível e matas ciliares em propriedades rurais próximas e o aquecimento global, que causa aumento das temperaturas e altera o ciclo de chuvas.
Como o Rio Miranda é afluente da Bacia do Paraguai, níveis de rios "vizinhos" como o Ladário servem de referência para medição. A régua da Marinha aponta que é a pior seca desde 2017, e que o nível já esteve mais de três vezes maior.
A 150 quilômetros dali, o Pantanal compartilha das consequências da seca histórica também no Rio Paraguai, o responsável pelas inundações que regem a vida no bioma.
A situação é monitorada com atenção desde o início deste ano. “Os níveis estão abaixo da média em todos os principais afluentes – Alto Paraguai, Cuiabá, Taquari, Miranda, Palmeiras, Aquidauana. É um mês de fevereiro que está entre os piores do histórico em alguns locais importantes da calha principal do Rio Paraguai, inclusive em Cáceres (MT) e Porto Murtinho (MS)”, explicou o pesquisador em geociências do Serviço Geológico do Brasil, Marcus Suassuna, no mês passado.
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