Após décadas de luta, indígenas recuperam território em ano histórico para MS
Em 2024, devolução da TI Nhanderu Marangatu, em Antônio João, reacendeu discussão sobre indenizar fazendeiros
Queremos a terra por inteiro, sentir, criar nossos filhos em paz. Já há um histórico de muita violência, não aguentamos mais", relato da comunidade guarani-kaiowá da terra indígena Nhanderu Marangatu, em carta enviada ao ministro Gilmar Mendes, em 25 de setembro de 2024.
Dorvalino. Simeão. Neri. Os guarani-kaiowá sempre recordarão os nomes daqueles que tombaram na luta pela reivindicação do território ancestral de Nhanderu Marangatu, uma área de 9.317 hectares localizada no município de Antônio João, na fronteira com o Paraguai, finalmente recuperada em novembro de 2024.
No dia 25 de setembro, o STF (Supremo Tribunal Federal) encerrou um conflito que se arrastava por quatro décadas. Em audiência de conciliação, firmou um acordo sobre a demarcação da TI (Terra Indígena) Nhanderu Marangatu e determinou o pagamento de R$ 146 milhões em indenizações, abrangendo tanto as benfeitorias quanto a terra nua das propriedades.
A União arcou com o pagamento imediato de R$ 27 milhões pelas benfeitorias realizadas nos imóveis, enquanto outros R$ 102 milhões serão pagos em precatórios, títulos judiciais. O Governo do Estado contribuiu com R$ 16 milhões, totalizando os R$ 146 milhões do acordo.
Cada propriedade foi avaliada individualmente pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) em 2005, com os valores corrigidos pela inflação e pela taxa Selic. O montante foi viabilizado por crédito suplementar.
A indenização foi o que possibilitou o cumprimento constitucional para restaurar o decreto de homologação da TI Nhanderu Marangatu, suspenso desde 2005 pelo então ministro do STF, Nelson Jobim, a pedido dos fazendeiros.
No dia 14 de novembro deste ano, a pecuarista Roseli Ruiz, última fazendeira que ocupava a área em disputa agrária em Antônio João, a 319 km de Campo Grande, desocupou a TI Nhanderu Marangatu. Após o governo federal realizar o depósito dos R$ 27 milhões, a empresária assinou a entrega da propriedade, que agora está definitivamente sob posse da Funai.
A decisão foi celebrada por diversos setores. O presidente da Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), Marcelo Bertoni, chamou o acordo de “momento histórico”.
O governador Eduardo Riedel (PSDB), que também participou do processo de negociação, divulgou um vídeo celebrando a demarcação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, em Antônio João, e destacou que a resolução foi alcançada após mais de 25 anos de conflito. “Sempre disse que buscaria uma solução junto com todas as partes interessadas”, afirmou.
Para o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), o acordo reforça o que o povo guarani-kaiowá sempre afirmou: Nhanderu Marangatu sempre foi terra indígena. A comunidade reiterou isso em uma carta entregue ao ministro do STF, Gilmar Mendes, durante a audiência.
Ñande Ru Marangatu, Nosso Pai Sagrado, fez-se existir neste território que vocês dividiram por fronteiras e que ainda hoje lutamos para poder cuidar dele por completo. Ele não pertence a nós; somos nós que pertencemos a ele. Nos fez habitar desde nossos avós, dos avós de nossos avós, para protegê-lo”, diz trecho da carta dos guarani-kaiowá.
Uma terra para ser e existir – Em guarani, tekohá é o termo usado para se referir aos territórios, e seu significado vai muito além de simplesmente "terra". O prefixo teko representa as normas e costumes da comunidade, enquanto o sufixo -há denota lugar.
Assim, o tekohá é o espaço físico — que inclui terra, floresta, campos, cursos de água, plantas e remédios — onde o modo de vida dos povos indígenas guarani e kaiowá se desenvolve. Para eles, a terra é uma extensão de si mesmos e a fonte de sua vida. É onde nascem, crescem, plantam, vivem e morrem.
E quem vive em Mato Grosso do Sul sabe que esta terra carrega uma história marcada pelo sangue indígena derramado, seja por armas de fogo ou pela violência contínua, expressa na negação de direitos básicos e em disputas judiciais que se arrastaram por décadas.
A situação de Nhanderu Marangatu, também conhecida como Cerro Marangatu, foi mencionada em relatório antropológico de 1985, quando o estudo tratava da demarcação de Pirakuá, em Bela Vista (MS), cidade vizinha a Antônio João.
Pirakuá foi reconhecida como área indígena pelo governo brasileiro na segunda metade da década de 1980, embora já existissem relatos e registros da presença indígena no local. O antropólogo Rubem F. Thomaz de Almeida descreveu Nhanderu Marangatu da seguinte forma:
“Tekoha referido ao Cerro Marangatu. Comunidade de 45 pessoas, incrustada entre a população da vila de Campestre, a 11 quilômetros da sede do município de Antônio João. Ocupam cerca de 10 ha. Inúmeros intentos foram realizados desde 1973 para que se mudassem para Pysyry (Paraguai) ou Dourados (Brasil), mas recusam-se terminantemente a sair dali, onde vivem em constantes conflitos e rusgas com a população regional. [...] Alegam que não abandonam a região de Cerro Marangatu, e aceitariam demarcação de área apenas em suas adjacências, o que permitiria que deixassem a dramática situação vivida em Campestre – o que deve ser realizado pela Funai. Este tekoha foi sendo paulatinamente deslocado e empurrado dos lugares que ocupou até se assentar de forma definitiva onde se encontra", diz trecho de relatório.
Os relatos são de que várias famílias indígenas viviam nas imediações do Rio Estrela até começarem a ser desalojadas por pecuaristas, na década de 1950. A expulsão levou os grupos para Pysyry, aldeia no Paraguai. Outro destino era a Vila Campestre, ainda no território de Antônio João.
Para os fazendeiros, a posse de não indígenas na região remonta a 1863, quando a Fazenda São Rafael do Estrela foi adquirida por dona Rafaela Lopes, do governo da República do Paraguai. A área passou a pertencer ao território brasileiro por força do Tratado de Paz firmado em 1870.
Os títulos de domínio teriam sido expedidos, posteriormente, pelo governo do Mato Grosso e ratificados pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), com anuência prévia do Conselho de Defesa Nacional.
Entretanto, para os guarani-kaiowá, um pedaço de papel não define sua relação com a terra ancestral. Por isso, sua luta, marcada pelas retomadas — ocupações das terras reivindicadas —, perdurou por anos e resultou em mortes.
A mais recente delas foi a do kaiowá Neri Ramos da Silva, de 23 anos, morto no dia 18 de setembro com um tiro na cabeça durante uma ação da PM (Polícia Militar), fato que reacendeu a urgência da demarcação do território.
Mas essa não foi a primeira morte no território. Em 2005, como consequência direta da suspensão do decreto de homologação, o guarani-kaiowá Dorvalino Rocha foi morto a tiros. O crime ocorreu na tarde do dia 24 de dezembro de 2005, véspera de Natal, nas proximidades da porteira que dá acesso às fazendas Fronteira, Morro Alto e Cedro, localizadas próximo ao município de Antônio João, a 319 km da Capital.
Antes do incidente, Dorvalino estava indo colher mandioca para o almoço da família, quando notou um carro vindo em sua direção. Quatro homens armados desceram do veículo, e o segurança disparou duas vezes, de acordo com testemunhas, "sem proferir uma palavra". Um dos tiros atingiu o pé, enquanto o outro acertou o peito de Dorvalino, que morreu no local.
No entanto, somente em 2023 os guarani-kaiowá finalmente tiveram um vislumbre de justiça. O vigilante João Carlos Gimenes Brito, acusado de assassinar o líder indígena Dorvalino Rocha, foi condenado a 16 anos de prisão em um julgamento que precisou de desaforamento e durou dois dias. O julgamento ocorreu no Fórum da Justiça Estadual de São Paulo, em Presidente Prudente, a 432 km de Campo Grande.
Dez anos após a morte de Dorvalino, em 2015, o jovem Simeão Vilhalva também foi assassinado em um ataque que contou com a participação direta dos fazendeiros envolvidos na negociação no STF e com a presença de políticos ligados ao agronegócio.
Essa foi a terceira morte na disputa por terras em Antônio João: Simeão Fernandes Vilhalva, 24 anos, foi atingido por um tiro no rosto, que saiu pela nuca, caindo às margens de um córrego, próximo à sede da Fazenda Fronteira, em 29 de agosto de 2015.
Nessas terras manchadas de sangue, a recuperação de Nhanderu Marangatu é uma conquista agridoce para os indígenas, já que seus parentes Neri, Simeão e Dorvalino não poderão ver a terra recuperada com seus próprios olhos.
Hoje recuperamos quase toda a nossa terra, falta só um pouco onde nosso guerreiro foi morto, Neri Ramos. Ali a fazenda já destruiu tudo. Eles tiraram a mata, árvores sagradas foram derrubadas e retiradas de lá escondido. Já não tem mais mata nesta fazenda Barra. Por isso, que quando retomamos nossa terra o que fazemos é retomar nosso ser, nosso modo de ser, teko porã, nosso jeito sagrado de ser, teko marangatu, pois somente por ele é que vamos conseguir salvar as plantas, a mata, as fontes de água, e os jara poderão voltar a habitá-los novamente", trecho da carta da comunidade Nhanderu Marangatu, enviada ao ministro Gilmar Mender.
Há solução? – Apesar de ter sido celebrada pelo governo federal e por setores ruralistas, o Cimi criticou o pagamento de indenização milionária a fazendeiros do município de Antônio João como parte do acordo para a demarcação do Território Nhanderu Marangatu.
Ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o órgão afirmou em nota que a solução dada para aquele território é a “exceção” e não pode servir de referência para as demarcações de outras áreas reivindicadas pelos povos tradicionais em Mato Grosso do Sul.
De acordo com o advogado e assessor jurídico do Cimi, Anderson Santos, é fundamental lembrar o princípio de que as terras indígenas são terras da União. Por esse motivo, não é admissível pagar por uma terra que já é pública. Segundo ele, o que tem sido discutido é a reparação por títulos.
“O ponto que ela precisa resolver é esse, o segundo ponto que gira em torno dessa discussão na indenização da reparação dos títulos. A gente trata como reparação dos títulos, não como indenização de terra nua, porque isso é proibido pela Constituição. Trata-se de reparar o erro que o Estado cometeu ao titular propriedades privadas em terras indígenas. Ele tem que arcar com esse custo que ele próprio gerou, então precisa resolver essa situação”, explica Anderson.
No caso de Nhanderu Marangatu, Anderson explica que o STF enfrentou dois eixos principais na análise do caso. O primeiro diz respeito à validade do decreto de homologação da terra indígena, emitido em 2005, mas suspenso após um mandado de segurança de fazendeiros.
Após anos de disputa, o STF confirmou o reconhecimento da terra como tradicionalmente ocupada pelos indígenas, de acordo com os artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Esse reconhecimento reforça que as terras indígenas são inalienáveis e que qualquer título de propriedade emitido sobre elas deve ser considerado nulo e extinto, mesmo que tenha sido expedido por órgãos públicos.
O segundo eixo envolve os títulos de propriedade emitidos pelo Estado de Mato Grosso do Sul, que foram validados em decisão judicial recente. Isso cria um impasse: embora a homologação da terra indígena seja legítima, os títulos também foram considerados válidos.
Por isso, Anderson pontua que o Cimi reafirma a necessidade de julgamento do Recurso Extraordinário 1017365, referente ao marco temporal, para que o STF estabeleça as balizas jurídicas para esses casos. Só dessa forma os direitos fundamentais dos povos indígenas poderão ter segurança jurídica.
Segundo ele, o processo de demarcação não pode ser paralisado devido a discussões sobre reparação de títulos ou reassentamento de proprietários. É fundamental garantir a continuidade das demarcações para que os direitos indígenas sejam efetivamente protegidos.
"O importante é que o processo de demarcação tenha continuidade, inclusive para poder discutir a situação de reparação de um título, de reassentamento ou de permuta para o proprietário obter uma terra em outro local. Esses procedimentos precisam ser concluídos. Não é justo que a comunidade fique sempre esperando, debaixo de um barraco de lona, pela solução do Estado brasileiro. O procedimento precisa continuar e seguir seu curso", pontua o advogado do Cimi.
Isso também foi destacado pela Aty Guasu - Grande Assembleia Guarani Kaiowá do Estado de Mato Grosso do Sul, em carta publicada no dia 13 de dezembro deste ano. A organização argumenta que a finalização do julgamento do Marco Temporal, RE 1017365 (Tema 1031), “é fundamental para estabelecer critérios válidos a serem adotados pela administração pública federal na apuração dos direitos indenizatórios para os não indígenas, conforme fixado na tese proposta pelo próprio STF”.
A carta também explica que, sem os embargos de declaração e a devida definição, qualquer indenização concedida a fazendeiros – muitos deles apontados como responsáveis por atos violentos contra os povos indígenas – pode abrir precedentes prejudiciais às futuras demarcações e afastar ainda mais o sonho de retorno aos territórios ancestrais.
Enquanto isso não ocorre, estamos sujeitos a todo tipo de violência, sendo que a mais cruel é uma espera sem fim pela demarcação dos nossos territórios, ao mesmo tempo em que a terra é devastada pela ganância daqueles que com ela não possuem nenhuma relação existencial”, denuncia a Aty Guasu.
A entidade também defende que haja reparação aos indígenas. “Sobre isso, gostaríamos de questionar: por que só falam em indenização para que os fazendeiros saiam das terras que exploraram e devastaram, ficando ainda mais ricos? Onde está a indenização para nosso povo, pelos assassinatos de nossos guerreiros e guerreiras, e pela destruição do nosso território e patrimônio? Queremos saber”, cobra a assembleia na carta.
Casos como o de Nhanderu Marangatu também reacenderam a discussão sobre outros territórios indígenas de Mato Grosso do Sul, como o caso da terra indígena Buriti, localizada entre os municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti.
Importante relembrar que em 2013, durante o governo de Dilma Rousseff (PT), foi proposta uma reparação aos proprietários de Buriti, baseada em avaliações do poder público sobre os danos causados. No entanto, a negociação foi rejeitada por alguns proprietários, especialmente aqueles ligados a sindicatos e grupos políticos.
Em novembro deste ano, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e o secretário-executivo da pasta, Eloy Terena, visitaram a Aldeia Córrego do Meio para retomar discussões sobre a regularização da Reserva Buriti. A intenção era buscar uma solução semelhante à adotada em Antônio João, com a indenização de fazendeiros para viabilizar a demarcação da Terra Indígena Ñanderu Marangatú.
Eloy Terena confirmou esse esforço à reportagem do Campo Grande News. “Em 2013, nós tivemos ali uma mesa de diálogo que, à época, foi infrutífera, infelizmente. Eu era o advogado na ocasião, e o governo federal da presidente Dilma fez uma oferta de acordo aos fazendeiros, mas eles não aceitaram. Vamos novamente retomar esse assunto.” Segundo ele, o primeiro passo é ouvir a comunidade para reiniciar as tratativas.
Os terenas reivindicam e tiveram reconhecidos 15 mil hectares na área rural de Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti. Atualmente, ocupam cerca de 2 mil hectares. A região foi palco de diversos momentos de tensão após o reconhecimento da área, em 2003, incluindo a morte de Oziel Gabriel, em 2013, durante uma ordem judicial para desocupação de fazendas.
O laudo antropológico sobre a região, que embasou o processo de reconhecimento, apontou que a Guerra do Paraguai forçou a dispersão dos indígenas, impedindo-os de reocupar suas áreas após o fim do conflito.
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