Acordo de Nhanderu Marangatu é exceção e não pode ser referência, avalia Cimi
Para órgão ligado à CNBB, fazendeiros serão indenizados, mesmo sendo invasores de terra indígena
O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) criticou o pagamento de indenização milionária a fazendeiros do município de Antônio João como parte do acordo para a demarcação do Território Nhanderu Marangatu, firmado na semana passada no STF (Supremo Tribunal Federal).
Ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o órgão afirmou que a solução dada para aquele território é a exceção e não pode servir de referência para as demarcações de outras áreas reivindicadas pelos povos tradicionais em Mato Grosso do Sul.
No dia 25, o governo federal, o governo de Mato Grosso do Sul e o grupo de fazendeiros negociaram, na sede do STF, o acordo de indenização para a saída dos produtores do território tradicional, mediante pagamento de R$ 146 milhões pelas benfeitorias e pela terra nua.
“Só depois da assinatura do acordo, o Estado cumpriu sua obrigação constitucional com os povos indígenas e restaurou o decreto de homologação da Terra Indígena Nhanderu Marangatu, suspenso desde 2005, em virtude de decisão monocrática proferida pelo então ministro Nelson Jobim”, afirma o Cimi.
Em nota oficial, o órgão diz que a restauração do decreto de homologação apenas confirma o óbvio: Nhanderu Marangatu sempre foi terra indígena. “Por isso mesmo, os fazendeiros sempre foram invasores. E eles, assim como o Estado, sempre souberam disso”.
O Cimi continua: “ao longo de décadas, os fazendeiros agora indenizados, sustentados pela inércia do Estado, esbulharam, despejaram, ameaçaram e atacaram covardemente famílias indígenas, provocando conflitos nos quais pelo menos sete guarani-kaiowá foram assassinados”.
O conselho lembra que em 2005, como consequência direta da suspensão do decreto de homologação, Dorvalino Rocha foi morto a tiros. Dez anos depois, em 2015, Simeão Vilhalva também foi também assassinado.
“O último indígena assassinado em Nhanderu Marangatu foi Neri Ramos da Silva, de 23 anos, morto no dia 18 pela Polícia Militar que, sob a justificativa de cumprimento de determinação judicial, atuava a serviço dos fazendeiros (agora já confirmados como invasores de um território indígena homologado)”, afirma a nota.
Segundo o Cimi, o Estado não adotou as medidas de proteção insistentemente solicitadas pela comunidade que poderiam ter evitado a morte de Neri.
“Longe de ser uma referência de solução para a demarcação de terras indígenas, o acordo sobre a T.I Nhanderu Marangatu, sob o manto de pacificação de conflitos, consegue privilegiar justamente aqueles que se apropriaram e exploraram as terras e as vidas indígenas. Por tudo isso, do ponto de vista ético e moral, o acordo indenizatório do dia 25 é injustificável”, afirma o conselho indigenista.
Para o órgão da CNBB, a indenização a ocupantes em territórios indígenas é tema “extremamente complexo” e necessita de amadurecimento que ainda não se deu. “É fundamental lembrar o princípio de que as terras indígenas são terras da União. Por esse motivo, não é admissível pagar por uma terra que já é pública”.
Marco temporal – O Cimi cita que em setembro de 2023, durante o julgamento do marco temporal, o STF acolheu a tese da indenização por “evento danoso”, prevista na Constituição. Significa que a pessoa que detém título de propriedade dentro de terra indígena decorrente de ação do Estado poderá ser indenizada. O próprio STF afirmou, no entanto, que sua aplicação deve estar condicionada por conjunto de critérios.
“Na decisão sobre o marco temporal, a Corte determinou, por exemplo, que a indenização por evento danoso teria que ser discutida em procedimento próprio, fora da discussão da demarcação. Não é o que aconteceu no dia 25. Depois de um ano da decisão do STF, o chamado procedimento próprio ainda não foi regulamentado, o que compete à União por meio da AGU (Advocacia-Geral da União). Diante da ausência de regulamento e de garantias, qualquer acordo é apresentado ilicitamente como ‘histórico’, ‘criativo’ ou ‘exemplar’. Mas isso é extremamente perigoso, pois gera insegurança jurídica onde antes havia previsão administrativa certa”, diz o Cimi, em nota.
O órgão explica que, para falar em evento danoso, é imprescindível que se constate a boa-fé na ocupação e a inexistência de presença indígena e esbulho renitente em 1988, bem como a impossibilidade de outras medidas como o reassentamento dos ocupantes.
“No acordo estabelecido no dia 25, o Estado abdicou de analisar a boa-fé dos ocupantes, bem como outros critérios estabelecidos pela Suprema Corte, o que é precedente muito grave. Durante os quase 20 anos de negligência do Estado em Nhanderu Marangatu, e ainda nas décadas anteriores, diversos crimes aconteceram. Esbulho, destruição de vegetação nativa, contaminação de solos e fontes de água; intimidações, racismo, ameaças e assassinatos de indígenas por seguranças privados, milícias e policiais militares”, acusa o conselho.
Para o Cimi, fica evidente que o acordo do dia 25 de setembro se aplica exclusivamente a Nhanderu Marangatu e não pode ser tomado jamais como referência para outros territórios.
“A indenização por evento danoso, e não por terra nua, precisa ser discutida, com definição de procedimento próprio e critérios objetivos. Por isso o Cimi reafirma a necessidade de que o julgamento de repercussão geral do Tema 1031 conclua com urgência, com a apreciação dos embargos e da inconstitucionalidade da lei 14.701/2023 [marco temporal]. Só dessa forma os direitos fundamentais dos povos indígenas poderão ter segurança jurídica”, afirma.
Para o conselho, não é ético afirmar, “como faz o governo”, que o acordo do dia 25 é uma vitória dos povos indígenas. “A comunidade Nhanderu Marangatu – ainda em luto e traumatizada – não pediu esse acordo. Ela foi intimada judicialmente a comparecer em audiência de conciliação convocada pelo STF a pedido da União. A comunidade nem pediu nem participou da negociação. Só queriam que seu direito fosse respeitado e sua terra fosse livre. O resto da cena é responsabilidade única dos governos federal e estadual e dos fazendeiros”.
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