A dimensão terapêutica do conhecimento histórico
A história deve ser encarada como um discurso de natureza científica que tem o objetivo de gerar um profundo desconforto nas sociedades do presente ao qual pertence aqueles que se debruçam sobre o seu passado. Não se produz história só pelo prazer de descobrir o que foi o passado, muito menos se reduz o conhecimento produzido nesse campo a uma ferramenta que nos mostra o quanto nos tornamos civilizados em comparação às épocas anteriores. Nosso foco, ao estudar o que fomos e como nos organizávamos nas mais variadas dimensões da nossa existência social, está determinado por um intenso senso político que se constitui a partir de um presente onde o conflito é parte do processo de constituição dos mecanismos de interação social.
Na esteira de P. L. Berger e T. Luckmann, é fundamental entender que a nossa realidade é uma construção determinada pela forma como nos relacionamos a partir de uma série de mecanismos sociais formais e informais, onde o conflito é a essência desse processo. Essa construção depende muito do jeito como entrelaçamos as significações do presente a partir de estruturas ideológicas que, fundadas na operacionalização de um passado onde os interesses de hoje são fundamentais para se determinar o que vamos ou não lembrar, são o fundamento da constituição da nossa subjetividade política e social. A minha condição, o conjunto de valores que serve como parâmetro para a minha definição como sujeito, está condicionada ao lugar social que ocupo no presente. Consequentemente, minha capacidade de perceber a realidade em sua dimensão mais complexa, sempre vai depender dessa posição que ocupo.
Não existe presente sem passado, mas o presente é o elemento que define a forma como enxergamos esse passado, e sua essencialidade sempre será determinada pelos embates que se estabelecem a partir das contradições desse presente. Como o presente é constituído numa multiplicidade de existências demarcadas por uma lógica de conflito intensa, esse passado que se apresenta a nós sempre será múltiplo, diversificado e limitado, e sua definição deve ser buscada num contexto metodológico que privilegia o exercício de poderes no campo social em que o presente se articula.
Como um terapeuta, os profissionais da história que assumem um posicionamento crítico, se colocam numa posição de fazer com que a sociedade enxergue para dentro de si e perceba que toda a dor, todo sofrimento que se manifesta no seu cotidiano faz parte de um processo que precisa ser encarado numa perspectiva onde aquilo que se pretende esquecer, deliberadamente ou não, é parte de um movimento político. As contradições que infernizam nossa existência são frutos de processos políticos que, para serem efetivamente equacionados, precisam ser articulados, pensados como fruto da nossa própria ação.
Como dizia o saudoso Milton Santos, um dos mais importantes intelectuais brasileiros, se somos um país racista, autoritário, misógino e violento, é porque escolhemos ser assim. Essas características não são consequências dos calores dos trópicos, muito menos da natureza da gente que para cá resolveu se mudar, voluntariamente ou não, em algum momento da história. Nossas contradições são fruto de um determinado modelo de desenvolvimento político e econômico levado adiante por uma elite que precisou do racismo, do autoritarismo, da misoginia e da desigualdade para garantir seu acesso privilegiado a toda riqueza que fomos capazes de produzir no decorrer da nossa história. E para que essa elite continue a usufruir desse privilégio é necessário que todas essas contradições continuem sendo mascaradas por mecanismos ideológicos que nos faça esquecer que a nossa condição é fruto da capacidade que possuímos de agir conscientemente.
Por isso, ao adotar uma postura crítica, os profissionais da história se tornam tão inconvenientes. Eles fazem com que a sociedade seja obrigada a discutir aquilo que a constrange. Sem contar que, ao admitir essa dimensão terapêutica, acaba demonstrando que o sofrimento que tanto nos atormenta pode se tornar algo capaz de ser superado, já que basta aos que padecem com a exclusão e com desigualdade, tomem consciência da sua condição e passem a se organizar politicamente no sentido da construção de outras opções de construção da realidade social.
(*) Marcelo Tadeu dos Santos é sociólogo.