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A fase aguda da covid ficou para trás, mas o momento é de reflexão

Luiz Carlos Dias (*) | 10/05/2023 08:30

Depois de pouco mais de três anos, a OMS, por meio do seu diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou, no dia 5 de maio de 2023, o fim da emergência sanitária global da covid-19. Vale lembrar que a emergência foi decretada pela OMS no dia 30 de janeiro de 2020 e a covid se tornou uma pandemia no dia 11 de março de 2020.

A OMS anunciou que, segundo seus especialistas, neste momento, a covid-19 não representa mais uma ameaça sanitária internacional.

Na verdade, trata-se de uma medida de caráter administrativo, de cunho mais burocrático, visto que hoje temos menos casos de infecção por covid, menos pessoas sendo hospitalizadas, menos mortes por covid. Há quedas consistentes em todos esses indicadores. E, quando estamos em emergência, a OMS adota atitudes excepcionais, como mecanismos de fornecimento de vacinas e testes, mudanças em critérios regulatórios e na aquisição de medicamentos, além do papel político da organização como fonte de informações confiáveis e orientações durante o período de emergência.

Fato é que muitos países já adotaram medidas encerrando estados de emergência motivados pela covid. No entanto, existe o receio de que, sem o status de pandemia, governos pelo mundo possam reduzir investimentos, prejudicando o monitoramento da doença, o sequenciamento de amostras e a identificação de novas variantes.

A OMS prometeu dar continuidade a algumas dessas ações, principalmente porque há muitas outras doenças que afetam populações negligenciadas e cujo combate viu-se bastante prejudicado. Os países de baixa renda precisam da OMS para conseguir enfrentar várias doenças, incluindo a covid, que não pode continuar matando, sendo que temos vacinas seguras e eficazes à disposição.

Mas é ótimo sair da emergência global, deixar a fase aguda para trás. Este é um momento muito esperado, muito aguardado, e devemos celebrar pois lá atrás, no começo da pandemia, havia muito medo e muitas eram as incertezas. Mas, com a decisão da OMS, este momento também deve servir de reflexão.

A covid-19 matou quase 7 milhões de pessoas segundo dados oficiais, um montante marcado certamente por muita subnotificação. A própria OMS considera legítimos cálculos apontando que cerca de 20 milhões de pessoas morreram em virtude da doença.

No Brasil, diante de um governo que adotou uma postura negacionista e contrária à ciência, um governo cuja atuação na pandemia revelou-se um verdadeiro descalabro, dificultando o efetivo combate à pandemia, a doença matou cerca de 702 mil pessoas, um número também certamente marcado pela subnotificação. Segundo o Boletim Epidemiológico No. 148 do Ministério da Saúde (MS), com dados até fevereiro de 2023, foram 231.571 óbitos em 2020, 383.876 em 2021, 62.875 em 2022 e 1.312 em 2023, totalizando 679.634 óbitos, um montante um pouco menor que os cerca de 702 mil atuais, mas um montante ainda sob processo de revisão e atualização.

Segundo dados dos boletins epidemiológicos 44, 92 e 148 do MS, desde o início da pandemia, foram 3.528 mortes por covid-19 na faixa etária de 0-19 anos, sendo 1.125 óbitos na faixa menor que 1 ano, 615 óbitos na faixa de 1-5 anos e 1.783 óbitos na faixa de 6-19 anos. Esses números estão sendo revisados e atualizados para o ano de 2023.

O país chegou a estar na lista dos locais com as maiores taxas de contaminação do mundo. O Brasil tem cerca de 2,7% da população mundial, mas registrou cerca de 11% dos óbitos provocados pela covid. Isso é algo inadmissível.

Durante o primeiro ano da pandemia, nós não tínhamos vacinas, havia muito medo, insegurança, dúvidas. Vimos muito sofrimento e dor.

Nós jamais poderemos esquecer as imagens dos hospitais lotados, os hospitais de campanha, e dos negacionistas que invadiram hospitais pra dizer que estavam vazios. Não podemos esquecer das pessoas segundo as quais a covid era uma gripezinha, das pessoas que subestimaram a doença logo transformada na pandemia mais devastadora do século, das retroescavadeiras cavando covas, da falta de oxigênio em Manaus, da falta de caráter de quem defendeu cloroquina, ivermectina, ozonioterapia retal contra a covid, das cerca de 4 mil mortes por dia em abril de 2021. Nós tivemos os piores ministros da Saúde que este país poderia ter, depois da demissão do ministro [Luiz Henrique] Mandetta e de sua equipe.

Nós vimos a dor e o sofrimento e choramos com a dor e o sofrimento de quem perdia familiares para a covid. Vimos profissionais da saúde exaustos.  Nós passamos por períodos de quarentena, lockdown, lavamos as mãos com frequência, usamos máscaras, mantivemos distanciamento físico, sentimos com a ausência de abraços e reuniões de família, dos amigos, do trabalho, demos aulas, assistimos a inúmeras lives, tudo remotamente, diante da frieza das telas de computadores e celulares (que, de toda forma, nos trouxeram algum conforto).

Mas um fator central a permitir o fim da fase mais aguda da pandemia foi a melhora do cenário epidemiológico graças às vacinas. Ah, as vacinas contra a covid, essas maravilhosas criações, representaram uma vitória extraordinária da ciência.

O mundo passou por uma campanha de vacinação histórica, sendo que cerca de 5,6 bilhões de pessoas no planeta tomaram ao menos uma dose de alguma vacina em um período de pouco mais de dois anos — cerca de 70% da população mundial. Foram aproximadamente 13,4 bilhões de doses aplicadas no total. As vacinas salvaram milhões de vidas e evitaram uma tragédia ainda maior.

Mas essa decisão mais recente da OMS não pode causar confusão. A emergência global acabou, mas a ameaça não. A covid não acabou, não foi erradicada. O vírus continua a contaminar e a covid ainda deve ser motivo de preocupação. Precisamos continuar com o monitoramento da doença, o sequenciamento de amostras e a identificação de novas variantes potencialmente preocupantes. E devemos continuar vacinando a população. No começo da pandemia, nós não tínhamos vacinas. Hoje temos vacinas seguras e eficazes que protegem contra a doença grave e a morte. Com as vacinas, as pessoas adoecem menos, morrem menos e é menor a probabilidade de novas variantes perigosas surgirem.

Hoje ainda temos novas sublinhagens da variante ômicron circulando. Precisamos evitar que uma nova variante mais perigosa apareça. Para isso, é essencial continuar vacinando a população, principalmente os mais idosos, as pessoas com comorbidades, os mais vulneráveis. A vacina bivalente da Pfizer está liberada para todas e todos com 18 anos ou mais de idade. Hoje, tão importante como aplicar a bivalente em grupos prioritários, é garantir ao menos três doses de vacinas para quem ainda não completou esse esquema vacinal.

Precisamos monitorar possíveis novas variantes da covid para auxiliar em futuras tomadas de decisão e será ótimo se tivermos vacinas ainda melhores no futuro.

Também precisamos continuar garantindo o acesso a vacinas, medicamentos, tratamentos de apoio e intervenções que salvam vidas para as populações vulneráveis em países de baixa renda. A concentração de doses nas mãos de poucos países no início do processo de imunização foi um dos dados mais tristes da crise sanitária e um exemplo do fracasso e incompetência da comunidade internacional em dar uma resposta bem orquestrada contra a pandemia. Essas alternativas terapêuticas têm que chegar até lá, até a ponta. O mundo precisa ser menos egoísta a fim de garantir acesso a medicamentos, vacinas e todas as intervenções que salvam vidas para quem mais precisa deles. Não pode haver tanto desequilíbrio, não podemos ter países acumulando doses de vacinas enquanto as populações dos países mais pobres sofrem por falta de acesso a esses recursos. Sem dúvida, milhares de vidas poderiam ter sido salvas se tivesse havido uma distribuição mais justa e equitativa das vacinas contra a covid-19. Nós não podemos aceitar que o regime de sanções comerciais domine o debate e prejudique a celebração de acordos em momentos complexos como esse.

Numa crise sanitária grave como a da covid, todos temos responsabilidades.

Durante a pandemia, infelizmente, nós vimos o pior do ser humano. Políticos, alguns jornalistas e órgãos de imprensa, líderes religiosos, ex-atletas disfarçados de jornalistas ligados à mídia de extrema direita, pseudocientistas, alguns médicos, alguns órgãos e conselhos de classe, todos unidos ao movimento antivacina, alimentando uma onda anticiência que plantou dúvidas na população e dificultou em demasia o combate efetivo à pandemia, espalhando mentiras, fake news e desinformação, contribuindo para matar pessoas.

Nós vamos precisar continuar essa luta insana contra grupos antivacina negligentes diante da vida, desprovidos de empatia, que disseminaram e continuam disseminando teorias da conspiração e fake news assassinas contra as vacinas.

Os negacionistas contribuíram para a morte e o adoecimento de muitas pessoas. Perdemos vidas que não eram para terem sido perdidas, pessoas que foram abandonadas por um governo negacionista. Eu escrevi no Jornal da Unicamp sobre o processo de desinformação e disseminação de fake news levado a cabo por órgãos oficiais do governo federal, atentando contra a saúde da população brasileira. E todos os que adotaram um discurso antivacina devem ser colocados na lata de lixo da história.

Mas, mesmo com o sucesso das vacinas ao controlar a pandemia, aquelas pessoas continuam firmes e de plantão no propósito de mentir, muitas delas para defender uma narrativa da extrema direita que prega desinformação e ódio com vistas a alimentar seu projeto de poder. Alguns porque têm projetos políticos, outros porque querem só faturar, como esses picaretas e charlatões sem solidariedade que cobram por falsos tratamentos de “detox vacinal” para eliminar os componentes supostamente tóxicos presentes nas vacinas. Vacinas que foram exaustivamente estudadas, que foram aprovadas por agências reguladoras do mundo inteiro e que nos tiraram dessa pandemia.

As vacinas foram aplicadas gratuitamente, mas esses charlatões, que nunca contribuíram para o combate à pandemia, só disseram mentiras e hoje estão lucrando horrores com tratamentos falsos sem qualquer tipo de eficácia.

Eles dizem que as vacinas são experimentais e vendem farsas como o ozonioterapia, a ivermectina para sequestrar metais pesados, a proteína spike etc., tudo sem qualquer comprovação científica. Esses charlatões estão enriquecendo às custas da ingenuidade de parcela da população brasileira. Há muita gente fraudando cartão de vacinação por aí. E essas pessoas vão distorcer essa mais recente decisão da OMS, como, alías, já estão fazendo.

Mas também foram muitos os profissionais fantásticos que mostraram seu valor e o melhor do ser humano.

Aqui no Brasil, destacou-se a atuação do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), de diversos profissionais valorosos da área da saúde, médicos, enfermeiros, cientistas, professores e pesquisadores das mais diversas áreas – porque todas as áreas são humanas (as humanas, as sociais, as exatas) –, de divulgadores da ciência, de boa parte da mídia, que defende a vida, de jornalistas falando de ciência. Nós fomos testemunhas das fantásticas contribuições dos nossos institutos de pesquisas como Butantan e Fiocruz, das nossas universidades públicas (federais e estaduais), de algumas universidades privadas, de entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e outras sociedades científicas, que saíram em defesa da ciência, das vacinas e da vida. E nós vencemos o negacionismo e o movimento antivacina então crescente no Brasil. No entanto, apesar de todo esse esforço, nós derrapamos na vacinação infantil e na aplicação da vacina bivalente. Precisamos continuar essa luta insana contra a desinformação. Chega de negacionismo de um desgoverno baseado em mentiras e fake news.

Graças às vacinas, que salvaram milhões de vidas no planeta, a OMS pôde declarar o fim da emergência sanitária resultante da covid. Mas não podemos esquecer essa tragédia, pois não foram só os 702 mil mortos. Temos a covid longa, que por muito tempo exigirá atenção dos sistemas de saúde.

Nós precisamos lembrar e aproveitar o que aprendemos, para nos prepararmos para futuras ameaças. Não podemos mais cometer os mesmos erros.

(*) Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp.

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