A guarda compartilhada de filhos e sua “imposição” da falta de consenso dos pais
É de conhecimento dos operadores do Direito em geral e de parte da população, mormente os mais interessados no tema, que, no dia 22 de dezembro de 2014, foi promulgada a Lei n. 13.058/2014, que alterou os artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei n. 10.406/2002 (Código Civil), para estabelecer novo significado para a expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação prática, havendo seu texto integral, além de publicado nos órgãos de imprensa especializada, chegado ao conhecimento da população por meio da mídia televisiva e jornalista, inclusive sob aplausos de órgãos e instituições ligados à matéria em si.
A Lei Federal n. 13.058/14 propôs também um equilíbrio maior no tempo de convívio dos pais com os filhos, levando em consideração as condições fáticas e interesses dos últimos, além de permitir uma fiscalização ainda maior ao pai ou à mãe que não detém a guarda unilateral, supervisionando de forma mais próxima o interesse dos filhos.
Prevê ainda a citada lei federal, quando da guarda compartilhada, o estabelecimento da base da moradia dos filhos àquele pai ou àquela mãe que melhor atender os interesses da prole.
A toda evidência, são induvidosos os avanços previstos na legislação em comento, mesmo em se tratando de um tema relativamente novo, como é o caso da guarda compartilhada.
Pensamos que a intenção do legislador foi possibilitar ao julgador um leque ainda maior de possibilidades, visando o balizamento e o equilíbrio de sua decisão quando do trato da guarda, mormente nos processos de divórcio, gerando maiores possibilidades de fiscalização da criação e educação dos filhos por ambos os genitores, vislumbrando ainda, ao mesmo tempo, maiores responsabilidades no cuidado da prole.
Porém, dentro desse “alargamento” dos poderes do órgão julgador, um deles nos chama a atenção, em virtude das possíveis consequências práticas de sua aplicação, quando das decisões judiciais. Com efeito, o grande problema, a nosso sentir, reside no novo § 2º do art. 1.584 do Código Civil. Assim afirmamos, porquanto o exercício da prática jurídica em geral, principalmente durante as inúmeras audiências nas Varas de Família, tem demonstrado uma enorme dificuldade de execução escorreita do dispositivo citado. Ao analisá-lo, em consonância com a realidade das audiências, é plenamente possível dizer que a prática forense nos leva a uma conclusão diferente daquela nele preconizada e idealizada.
Diz o artigo em tela que: “quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os cônjuges aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor”.
O dispositivo é bastante claro e não gera dúvidas de sua interpretação. Assim, de acordo com sua parte final, não havendo acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor, haverá uma inclinação ao deferimento da guarda àquele genitor que sinalizou positivamente quanto à intenção da guarda do filho. A solução é mais fácil nesse caso, salvo se aquele que pretenda adquirir a guarda não possuir condições sociais, psicológicas, pessoais ou materiais de cuidado da prole, sendo a questão remetida ao § 5º do referido artigo. Nossa atenção, porém, ficará adstrita ao citado § 2º.
Sinalizando ambos os genitores a intenção da guarda do(s) filho(s), encontrando-se ambos aptos a exercer o poder familiar na sua plenitude e não havendo consenso sobre tal, reza o dispositivo da nova lei que será aplicada a guarda compartilhada.
Eis o problema que a prática nos mostrou.
A guarda, como decorrência direta do poder familiar (antigo “pátrio poder”), desde a sua origem, incluindo-se agora a guarda compartilhada, sempre teve por finalidade essencial e final a “proteção dos filhos”, mesmo levando-se em consideração a evolução histórica do instituto de acordo com as nuances sociais até os dias de hoje. Assim, dentro dos atributos do poder familiar (direitos e deveres) se encontra a guarda dos filhos, conforme previsão do art. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente e do art. 1.634 do Código Civil.
A guarda, portanto, “é, a um tempo, um direito, como o de reter o filho no lar, conservando-o junto a si, o de reger a sua conduta, o de reclamar de quem ilegalmente o detenha, o de proibir-lhe companhias nefastas e de frequentar determinados lugares, o de fixar-lhe residência e domicílio e, a outro, um dever, como o de providenciar pela vida do filho, de velar por sua segurança e saúde e prover ao seu futuro.” (GRISARD FILHO, 2010, p. 47-48).
Destacamos, por oportuno e de suma importância, que a maioria dos divórcios (segundo a riquíssima fonte de informação chamada de “prática jurídica”) termina, ainda, de forma litigiosa, em puro conflito, mesmo que apenas quanto a alguns “pontos” processuais expostos pelas partes.
Uma série de razões, tais como diferenças de ordem cultural, social, religiosa, mental, ideológica etc., impede o bom relacionamento dos pais ao fim do casamento, gerando diversos conflitos, desde os mais pontuais (apenas sobre a guarda dos filhos, ou os alimentos, ou ainda a divisão do patrimônio), até a totalidade dos “itens” a serem discutidos em um processo de divórcio.
Não devemos deixar de lado também as mágoas e ressentimentos gerados pelo fim do casamento, que obviamente influem diretamente na formação do litígio entre as partes.
Ora, são justamente esses processos de divórcio com fins litigiosos (ainda a maioria), juntamente com a possibilidade estabelecida pela Lei n. 13.058/14 de “imposição” da guarda compartilhada ante a ausência de consenso entre as partes, que podem contrariar a finalidade essencial da guarda, que é a proteção “lato sensu” dos filhos, uma vez que estes estarão em constantes riscos de toda ordem (físicos e psicológicos), em virtude dos desentendimentos de seus genitores, que não raras vezes acabam “usando” os menores como objeto de vendeta, em face das mágoas e ressentimentos gerados pelo término da relação conjugal. “O estado de beligerância, que se instala com a separação, acaba, muitas vezes, refletindo-se nos próprios filhos, que são usados como instrumento de vingança pelas mágoas acumuladas durante o período de vida em comum.” (DIAS, 2010, p. 431).
Importante lembrar, segundo doutrina abalizada de Maria Berenice Dias (2010, p. 432), que: “Os fundamentos da guarda compartilhada são de ordem constitucional e psicológica, visando basicamente garantir o interesse do menor. Significa mais prerrogativas aos pais, fazendo com que estejam presentes de forma mais intensa na vida dos filhos. A participação no processo de desenvolvimento integral dos filhos leva à pluralização de responsabilidades, estabelecendo verdadeira democratização de sentimentos. A proposta é manter os laços de afetividade, minorando os efeitos que a separação sempre acarreta nos filhos e conferindo aos pais o exercício da função parental de forma igualitária. A finalidade é consagrar o direito da criança e de seus dois genitores, colocando um freio na irresponsabilidade provocada pela guarda individual. Para isso, é necessária a mudança de alguns paradigmas, levando-se em conta a necessidade de compartilhamento entre os genitores da responsabilidade parental e das atividades cotidianas de cuidado, afeto e normas que ela implica.” (grifo da autora).
Assim, a guarda compartilhada, tal como idealizada pelo legislador e interpretada pela doutrina, tem por fim a corresponsabilidade parental, ou seja, a divisão de responsabilidades no trato dos filhos; a responsabilização e o exercício conjunto de direitos e deveres concernentes ao poder familiar.
Pergunto: a imposição da guarda compartilhada pelo julgador, ante a ausência de consenso entre os pais (supõe-se conflito), permitiria, na prática, a divisão de responsabilidades e todas as tarefas do cotidiano quanto aos filhos (escolha de escola, médico, dentista, horários em geral, férias, festas de fim de ano, viagens, gastos em geral, presentes, supérfluos, orçamento etc.)? Não haveria, na verdade, mais conflitos e, por consequência, violação da finalidade essencial da guarda (que inclui a compartilhada), que é garantir proteção, cuidados e educação dos filhos?
As perguntas são feitas levando-se em consideração que, muitas vezes, é claramente observável (analisando-se o comportamento das partes durante audiências de conciliação ou mesmo instrução e julgamento) que ambos os genitores estão plenamente aptos ao exercício da guarda, uma vez que zelosos com os filhos, responsáveis, preocupados, carinhosos e afetuosos, não havendo nada que os desabone do possível exercício desse mister. Porém, a despeito de tais predicados unilaterais, pode ocorrer o caso de os pais estarem em enorme conflito entre si, em completo estado de beligerância, a ponto de mal conseguirem trocar algumas palavras em audiência, ou mesmo de se olharem, e não conseguirem se entender no que diz respeito às responsabilidades com a prole, contrariando-se mutuamente sobre inúmeros aspectos que tratam dos filhos (escola, médicos, horários, lazer etc.).
Portanto, “ao pé da letra”, mesmo na hipótese acima, haveria perfeito enquadramento dos fatos ao preconizado pelo § 2º do art. 1.584 do Código Civil, uma vez que estão os pais aptos ao exercício da guarda e não conseguem chegar a um acordo quanto ao tema. Ainda assim aplica-se o dispositivo? Sendo ambos aptos à guarda, porém com fortes conflitos pessoais, deve o juízo fazer uso irrestrito da lei?
Pensamos que a guarda compartilhada, quando aplicada em estado de beligerância entre as partes (momento em que não conseguem romper barreiras), ao contrário de evitar os conflitos que ocorrem quando da aplicação da guarda unilateral, geraria ainda mais desavenças e desgastes, tendo como os maiores prejudicados, senão os únicos, os filhos, quando na verdade deveriam estes ser alvos de proteção da lei.
Lembramos que: “Os filhos, querendo ou não, participam dos conflitos e se submetem aos entraves inerentes à dissolução do laço amoroso entre os pais, sofrendo consequências desse desenlace” (DIAS, 2010, p. 430).
Sobre o tema, Rafael Madaleno e Rolf Madaleno (2018, p. 231-232) afirmam: “A pauta de toda e qualquer decisão deverá ser sempre a partir do SIM (superior interesse do menor) e não porque um genitor quer a guarda conjunta e o outro não, ou porque os dois desejam dividir de forma equilibrada o tempo dos seus filhos, atento igualmente o magistrado para qualquer cenário de violência doméstica que impeça, peremptoriamente, qualquer ensaio acerca do compartilhamento da custódia dos filhos”.
Discorrem ainda os mesmos autores, enfatizando o assunto, que: “Como prevalecem os interesses dos filhos sobre os interesses de seus pais, pautas vêm sendo consideradas pela jurisprudência para determinar concretamente o superior interesse do menor (SIM) e, embora nem sempre seja fácil interpretar o julgamento jurídico de ‘superior interesse do menor’ (SIM), por se tratar de um conceito indeterminado, cujo conteúdo exige entender as circunstâncias especiais que se apresentam individualmente, em função e atenção às especificidades pessoais e familiares de cada criança ou adolescente, como informa Aída Carlucci (CARLUCCI, Aída Kemelmajer de. ‘Op. cit.’ [La guarda compartida: una visión comparativa.], p. 12), podem ser determinados os seguintes pressupostos objetivos que favorecem um sistema de guarda compartilhada:
i) A aptidão dos pais para assumirem de forma adequada a alternância da guarda e o comprometimento de ambos os genitores nas tarefas relacionadas aos filhos, devendo ser rigorosamente avaliada a capacidade dos dois progenitores para ostentarem o compartilhamento dessa guarda, necessitando o par ascendente ter condições de diferenciar os conflitos pessoais da sua relação paterno-filial, e que apresentem um plano de colaboração comum de responsabilidade para com seus filhos.” (MADALENO & MADALENO, 2018, p. 282 – grifo nosso)
A preferência legal tem sido pela guarda compartilhada, desde sua formalização por meio da Lei n. 11.698/2008.
Todavia, quando se tratava da aplicação da guarda no caso concreto (mais uma vez a prática jurídica serve de paradigma), o compartilhamento da guarda somente ocorria e se aplicava quando havia o consenso entre os pais, completamente fora de uma “zona de conflito”, naqueles casos mínimos em que o término da relação conjugal se dava por perfeito acordo bilateral, em que os genitores efetivamente se preocupavam com a continuidade da criação e educação dos filhos por ambos, independentemente dos motivos que ensejaram o fim do casamento, reconhecendo a importância da presença de ambos os genitores na vida de seus rebentos.
Sensíveis aos fatos e verificando que muitos genitores não conseguiam diferenciar os conflitos pessoais das relações paterno-filiais, os julgadores aplicavam a guarda compartilhada em estado de exceção, como o fazem até hoje, a despeito da intenção do legislador, que a queria como regra.
Por isso mesmo, pensamos que a prática jurídica mais uma vez vai “ditar as regras” no momento da aplicação da Lei n. 13.058/14, pois, percebendo os juízes do caso concreto a existência de conflito entre os pais ao fim da relação conjugal, não será imposta a guarda compartilhada como pretendeu a lei, justamente pela possibilidade de violação tanto dos direitos dos filhos menores como, consequentemente, da própria finalidade essencial da guarda, uma vez que os genitores não estariam aptos à divisão de tarefas, responsabilidades e obrigações, pelo menos naquele momento, mesmo que os estudos psicológicos e psicossociais realizados apontem a seu favor.
Bastante oportuna e precisa a lição de Madaleno e Madaleno (2018, p. 282) sobre o tema: “Embora a legislação atinente à custódia conjunta aparentemente imponha a guarda compartilhada física e vozes doutrinárias e jurisprudenciais venham afirmar ser vedado ao julgador decidir de forma diversa acerca do compartilhamento da guarda, devendo o juiz deferi-la sempre que neste sentido haja pedido expresso de um dos genitores, e o magistrado não encontre na prova dos autos de uma ação que paute pela guarda conjunta qualquer contraindicação para a sua aplicação, inquestionavelmente, em sede de demanda relacionada com os superiores interesses dos infantes, o pronunciamento judicial sobre a guarda e o exercício do poder familiar não vincula o julgador ao princípio processual da congruência ou da adstrição, e tampouco ele está obrigado a decidir sempre em prol do compartilhamento da guarda física ou legal. É dever da família, da sociedade e do Estado, e o juiz é seu representante imediato em termos de garantias constitucionais, assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre vários outros direitos de fundamental relevância, o direito à convivência familiar que coloque o infante a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CR, art. 227).”
Continuam os autores:
“Os interesses dos filhos devem ser atendidos com prioridade sobre todos os outros critérios estabelecidos pelo legislador, ainda que exista uma inclinação legal pela imposição da compartilhada, e que aparentemente só seria afastada diante da expressa rejeição de um dos progenitores. Embora o julgador esteja vinculado por mandato constitucional a aplicar a lei no momento de julgar, em matéria de direito cogente em que existe inegável interesse público, sendo que (‘sic’) em sede de proteção dos prevalentes interesses dos menores os direitos se tornam indisponíveis e, portanto, nesta dimensão fática e legal o julgador estará unicamente adstrito ao exame das condições fatuais, centrando sua convicção pessoal na valoração que obrigatoriamente faz o magistrado sobre toda a sorte de provas que foram produzidas nos autos (interrogatórios, documentos, testemunhas, audiência dos menores, estudos sociais, orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, eventuais outras perícias e diligências adicionais), para desta equação extrair sua motivada convicção pessoal.
Não será o direito subjetivo dos pais à guarda compartilhada física a motivação de seu deferimento, como tampouco serão a rejeição deste modelo de custódia ou a ausência de idoneidade de qualquer um dos genitores, as únicas causas de exclusão ou de afastamento da guarda compartilhada e que conduzirão o magistrado a julgar sempre em favor dos pais, como defendem alguns, afirmando que o juiz não mais pode julgar contra a expressa determinação da Lei n. 13.058/2014, que tornaria doravante obrigatória a guarda compartilhada dos filhos mesmo nos casos de desacordo dos pais.” (MADALENO & MADALENO, 2018, p. 283).
Lembro ao caro leitor que o texto trata de uma visão prática dos casos de aplicação da guarda compartilhada em um país onde os conflitos e o dissenso ainda são regras quando dos litígios judiciais postos à apreciação do Poder Judiciário, principalmente nos casos de divórcio, e apenas uma drástica mudança cultural e comportamental permitiria a aplicação da Lei n. 13.058/14 na sua plenitude e literalidade, tal como concebida.
Destacamos o significativo aumento dos casos de guarda compartilhada aplicados após o advento da lei, porém, ainda com inúmeras consequências em desfavor da prole, justamente pela incapacidade dos pais de diferenciar seus conflitos pessoais e a relação com os filhos.
Acreditamos que o autor do projeto de lei que resultou na lei federal em comento tinha em mente a democratização de responsabilidades entre os pais na guarda compartilhada, contudo, uma lei vale mais pelos seus destinatários – ou seja, a quem efetivamente é dirigida – que propriamente pela ideia e pelo fundamento de validade de seu criador.
A guarda, qualquer que seja a sua modalidade, deve atender primordialmente os interesses dos filhos menores, como o maior “patrimônio” resultante de uma sociedade conjugal, ainda que esta última tenha chegado ao seu fim.
Kristiam Gomes Simões (*) 2º Promotor de Justiça de Campo Grande