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A poética do racismo e seus aspectos distópicos e utópicos

Ricardo Alexino Ferreira (*) | 02/07/2020 13:36

Racismo é o tema que sempre esteve no agendamento das sociedades, seja negando-o, afirmando-o ou ignorando-o, mas presente. Diferente do não-racismo que é um desejo utópico, principalmente dos grupos vulneráveis que sofrem o racismo. Por esse motivo, entender o racismo e o não-racismo pelos conceitos de distopia e utopia é importante na busca de novas perspectivas.

O termo utopia surge, pela primeira vez, em 1516 (século 16), no título da obra de Thomas More, Utopia, que vai falar de uma sociedade perfeita, paradisíaca. A ilha-reino de More é um semicírculo de quinhentas milhas de arco onde existem cinquenta e quatro cidades organizadas a partir da estrutura familiar. É o que poderíamos chamar de não-lugar, um lugar que não existe na realidade. Dessa forma, utopia é um contraponto às sociedades distópicas, porque pressupõe o que seria ideal em relação aquilo que é real.

Assim, ao se falar de racismo, na perspectiva utópica, surge o não-racismo, que seria a construção de uma sociedade idealizada. Por isso, no discurso do não-racismo surge a idealização do negro, dos conceitos de justiça e liberdade, da necessidade de heróis.

Mas isso não está restrito apenas às questões étnicas. Se analisarmos o discurso do que é ser mulher contemporânea, por exemplo, existe uma idealização. A mulher seria intuitiva, generosa, superinteligente, que poderia construir um mundo muito mais solidário do que o homem, uma espécie de representação simbólica da personagem Diana, da ilha imaginária de Themyscira, ou seja, a Mulher-Maravilha.

Barack Obama afirmou, em evento em Cingapura, em dezembro de 2019, que “se as mulheres governassem todos os países do mundo, haveria uma melhora geral no padrão de vida e nos resultados (…) as mulheres não são perfeitas, mas são ‘indiscutivelmente melhores’ que os homens”.

Tal discurso não só de Obama, mas recorrente na contemporaneidade, cria uma utopia daquilo que seria ser mulher. Ou seja, há uma idealização que desumaniza o real. No real, nas sociedades distópicas, muitas mulheres que estiveram no poder não se demonstraram dessa forma idealizada, utópica.

Para isso, basta lembrar das políticas econômicas de Margareth Thatcher, a Dama de Ferro, que instituiu aquilo que ficou conhecido como “Thatcherismo”, ou seja, uma política que preconizava a privatização de empresas estatais e a redução do poder e influência dos sindicatos. Assim como Christine Lagarde, que foi presidente e diretora geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), de 2011 a 2019, com políticas duras. Daí o seu codinome “durona”. Ou Condoleezza Rice, que foi secretária de Estado do governo Bush, de 2005 a 2009, e, também, Conselheira de Segurança Nacional com perspectiva bélica e interferência política em diversos países, como, por exemplo, incentivadora da Guerra no Iraque. Pelas suas políticas foi considerada “traidora da raça”, pelas entidades afro-americanas. Poderíamos incluir, também, as mulheres da política de extrema-direita do Brasil atual, sem nenhum traço de alteridade.

Portanto, a utopia cria o “não-lugar” em diversos aspectos e prende os seus personagens na ilha-reino de Thomas More. O que faz também do não-racismo uma construção utópica, em que se deseja uma sociedade com justiça social e equidade étnica. Nesse contexto, também é possível pensar se a democracia não seria, em stricto sensu, também uma utopia.

Racismo somente pode ser entendido na distopia

No entanto, a poética do racismo somente pode ser compreendida na distopia. O termo distopia, também conhecido como cacotopia ou antiutopia, foi dito pela primeira vez por John Stuart Mill, em um discurso no Parlamento Britânico, em 1868. Nesse discurso ele criticava a utopia de Thomas More e conceituava, naquele momento, distopia como o lugar ruim, cheio de dificuldades, dor, privação, infelicidade.

Apesar de ser liberal, Mill tinha grandes preocupações com as questões sociais. Ele foi transformando as suas ideias durante toda a sua vida, defendendo a liberdade de expressão e o direito à autonomia. Ele defendia o direito de voto das mulheres, o controle de natalidade, a reforma agrária, formação de cooperativas de produtores. Chegou a ser preso por seus ideais.

Mas Mill acreditava que o mundo presente é marcado pelo mal, definido por ele como sendo a distopia. Segundo ele, é a partir da distopia que se deve pensar todos os fenômenos sociais. Também acreditava que a promessa da tecnologia de libertar, tornou-se opressiva para o trabalhador.

Ao utilizar a teoria de Mill para entender o racismo, muitas ressignificações são necessárias. Se as sociedades são marcadas pela distopia, não há como ter liberdade sem mudar as estruturas. Por isso, o racismo jamais irá ser destruído sem que as estruturas sociais e econômicas tenham sido modificadas.

Os movimentos de protestos nos Estados Unidos, nas últimas semanas, em decorrência da morte de George Floyd, trazem muito da utopia, pois partem do princípio equivocado e idealizado que para acabar com o racismo é necessário ter apenas consciência social.

Esse movimento atual, que teve o nome “Toda vida negra importa”, mobilizou várias cidades estadunidenses. Porém tem muito pouco de contemporâneo e não foi o único movimento de protesto clamando pela vida de negros massacrados pela máquina do Estado. Em 1992, Los Angeles foi palco de manifestações contra a agressão policial sofrida pelo afro-americano Rodney King. Os protestos foram violentos e reprimidos e resultaram em 63 mortes.

Em 2013, a absolvição do vigilante George Zimmernan, que matou o adolescente negro Travyvon Martin, em Sanford, Flórida, gerou diferentes manifestações por todo o país. As mesmas ondas de protesto aconteceram com a morte de Eric Garner, em Nova York, pelo policial Daniel Pantaleo, que o estrangulou. A frase “Eu não consigo respirar” foi dita por Garner e repetida agora por George Floyd.

Outro caso que provocou protestos foi a morte suspeita do afro-americano Freddie Gray, que foi detido, conforme testemunhas, sem ferimentos por policiais de Baltimore, em Maryland, e deu entrada no hospital com ferimentos na cabeça, pescoço e coluna, vindo a morrer dez dias depois. Com a absolvição dos policiais envolvidos no caso, os protestos tiveram 120 pessoas feridas e 486 presas. Todos esses dados foram publicados na imprensa e documentos oficiais.

Todas as manifestações se dissolvem no ar

Dessa forma, as ondas de manifestações contra, principalmente policiais agressores de afro-americanos, nos EUA, não são recentes. As manifestações surgem, duram dias ou semanas e depois evaporam no ar até o próximo evento de violência.

Acredito que o mesmo acontecerá com os movimentos de protestos atuais, que têm como slogam “Vidas negras importam” ou “Não consigo respirar”, que geraram grande comoção social, mas estão fadados ao minguamento.

O fracasso desses fenômenos sinaliza algumas construções utópicas, pois levam a acreditar que a violência estaria apenas em policiais violentos que teriam como propósito matar negros. Dessa forma, sair às ruas e protestar seriam reações que utopicamente resolveriam o problema. Daí a falência dos movimentos grandiosos de protestos, pois colocam apenas nos indivíduos o ato de violência, mas não nas máquinas estatal, empresarial e econômica como as engrenagens que perpetuam as desigualdades.

Outra análise é que esses eventos se tornam midiáticos, amplamente divulgados pela imprensa e pelas redes sociais como grandes espetáculos. São eventos performáticos, que desaparecem com facilidade das pautas, ansiosas por um novo fato. Com o sepultamento de Floyd, no dia 11, as notícias sobre manifestações começam a minguar. Nas páginas do UOL de 12 de junho não há nenhuma notícia de destaque sobre as manifestações nos EUA contra a morte violenta de Floyd. É como se nada tivesse acontecido.

Esses fenômenos acontecem sistematicamente porque eles são tratados como ideais utópicos, quando deveriam ter como base a distopia. O não-racismo somente será modificado se entender que existe uma estrutura que o sustenta. Portanto, para acabar com o racismo torna-se necessário modificar as estruturas sociais e do Estado. Deve-se partir do princípio de que estruturas calcadas em modos de produção opressivos perpetuam a exclusão. Deve-se mudar os modos de produção e a relação com as classes subalternizadas para então acabar com o racismo.

Assim, o pensamento de John Stuart Mill é contemporâneo porque ele acredita que o mal deve ser encarado como mal e torna-se necessário tomar decisões e projetos a partir dessa realidade, que ele chamou de distopia.

Ao entender a poética do racismo em contexto distópicos é que se pode iniciar o processo de mudança. Aqui entende-se a poética do racismo como sendo a sua argumentação, a sua estética e a sua ressignificação. A distopia vai envolver também as artes expressivas e, também, filmes e outras produções audiovisuais que, se distópicas, permitem fazer críticas às realidades colocadas. Porém, quando essas construções midiáticas e artísticas são colocadas no nível da utopia, retardam os processos de mudanças.

(*) Ricardo Alexino Ferreira é professor associado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP (Universidade de São Paulo) e membro da Comissão de Direitos Humanos da USP.

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