Ações que podem superar obstáculos às agendas da saúde
Aagenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), consolidada no ano de 2015, com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), traz um apelo ambicioso e universal em favor da busca por saúde, paz e prosperidade para a humanidade. No entanto, essa agenda foi comprometida pelo aumento da pobreza, a destruição acelerada dos ecossistemas e a ocorrência de eventos complexos e inesperados, como os conflitos armados, os movimentos migratórios e a pandemia da covid-19. Assim, as ações intersetoriais que compatibilizam a erradicação da pobreza, a promoção do crescimento econômico e a redução da degradação ambiental podem contribuir com o planejamento sanitário alinhado às metas previstas para o ano de 2030.
Adicionalmente, as ações setoriais voltadas ao desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS) com seus princípios doutrinários e organizativos, previstos na Constituição de 1988, precisam ocupar com mais ênfase as agendas sanitárias dos governos e orientar a formulação, a execução e a avaliação das políticas públicas.
Há consenso que o SUS tem sido alvo de uma quíntupla carga de obstáculos: o subfinanciamento, com a malversação dos gastos públicos; as deficiências na governança do sistema, da atenção e da assistência à saúde; as insuficiências quantitativas e qualitativas dos recursos humanos; a baixa inclusão nas agendas de pesquisa e inovação e a falta da sua adoção enfática como patrimônio social nacional.
A elevada carga tributária de impostos e contribuições nos âmbitos municipal, estadual e federal pela população brasileira é que deveria garantir o direito constitucional de atenção integral à saúde e o dever do Estado de provê-la, mas paradoxalmente, no Brasil, a soma dos desembolsos privados tem sido superior às despesas governamentais.
Os gastos públicos em saúde no Brasil, no ano de 2019, representaram apenas 40,74% dos gastos totais em saúde (3,91% do PIB), para cobrir cerca de 70% das pessoas que dependem exclusivamente do SUS, enquanto a média dos gastos públicos entre países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) situou-se em torno de 61,68% (6,1% do PIB).
O financiamento da saúde no Brasil é predominantemente privado e soma em torno de 5,7% do PIB, para cobrir cerca de 30% da população, o que significa que, em média, uma pessoa com plano de saúde usufruiu em torno de cinco vezes mais recursos do que a média daqueles que dependem exclusivamente do SUS.
Deve ser enfatizado que algumas atividades sanitárias são bens comuns disponíveis à totalidade da população brasileira, como as ações de vigilância em saúde e de atenção de elevada complexidade, cuja cobertura muitas vezes é limitada pelos planos privados.
Acrescido ao subfinanciamento público, o modelo de atenção à saúde tanto nesse sistema, como nos privados ainda está muito focado nas ações curativas, que respondem respectivamente a 81,5% e 90% do total dos gastos.
Destaca-se o elevado pagamento direto pelas famílias de despesas com medicamentos e artigos médicos (87,7%), o papel dos governos nas despesas com atividades de prevenção, promoção e vigilância em saúde (89,6%) e dos planos e seguros com gestão (64,4%).
Assim, as disputas em torno da distribuição de recursos do orçamento da seguridade social no âmbito dos três entes federados precisam de maior controle da sociedade, dos colegiados deliberativos do SUS, dos conselhos de secretários de saúde, das universidades, da mídia, dos ministérios e defensorias públicas, do Judiciário, dos tribunais de contas e do Legislativo.
A redução do volume de recursos em transferências da União para os Estados e municípios para o financiamento do SUS precisa ser incluída na agenda do Congresso Nacional como forma de mitigar a fragilidade das condições das instituições que prestam serviços de saúde. Por outro lado, o aumento no financiamento precisa estar condicionado às ações contidas no planejamento sanitário, ao controle social dos gastos públicos com saúde e à melhoria do desempenho.
As isenções tributárias concedidas ao setor privado, de aproximadamente 30% dos gastos federais em saúde, concentram-se em descontos no imposto de renda da pessoa física e isenções tributárias de instituições filantrópicas, o que resulta em subsídio aos grupos populacionais de maior renda e precisam ser revistas.
Em geral, os atendimentos em saúde no SUS para beneficiários de planos de saúde privados têm sido concentrados em procedimentos de média e elevada complexidade com maior custo e, embora exista previsão legal de ressarcimento pelos serviços de saúde prestados, o questionamento em juízo pelas operadoras de planos de saúde tem inviabilizado essa prática, o que requer ajustes de procedimentos entre o Executivo e Judiciário.
A extinção das emendas parlamentares que subjugam o poder de fiscalização do Legislativo pode incrementar o financiamento para a saúde e restabelecer o controle e a qualidade dos gastos nos três níveis de governo, com o devido acompanhamento da alocação de recursos e da execução do planejamento sanitário condicionando-o à melhoria do desempenho.
A garantia da atenção integral em sistemas de saúde com busca por cobertura universal deve ser obtida por meio de identificação de necessidades e riscos para a saúde da população e concepção de redes regionais de atenção com ações e serviços de complexidades distintas, distribuídos para um conjunto de municípios, composto com a vigilância em saúde e atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial e especializada ambulatorial e hospitalar, a partir de estrutura operacional já bem estabelecida.
A instituição de carreira pública para a saúde em todos os níveis de governo, principalmente nas áreas de planejamento, vigilância em saúde, atenção primária, regulação, auditoria e em instituições que integram ensino, extensão e pesquisa com inovação, com programas de progressão baseados no desenvolvimento de indicadores de saúde universalmente aceitos e pactuados, pode reduzir os vazios assistenciais e garantir os avanços na territorialização com regionalização e na atenção à saúde.
O SUS precisa de um sistema único de informação e o estímulo à interoperabilidade entre sistemas já implantados pode melhorar a relação de custo efetividade e potencializar a telessaúde, que, além de auxiliar na assistência, pode qualificar a atenção primária, reduzir e organizar o acesso para os atendimentos especializados e fortalecer a rede de atenção à saúde, a educação e o trabalho interprofissional.
A área da saúde é altamente dependente de pesquisa, inovação e desenvolvimento tecnológico especializado e o Complexo Econômico Industrial da Saúde (Ceis) de um país representa sua maturidade científica, tecnológica e industrial.
A incapacidade de colocar em sintonia as lógicas sanitária e econômica em benefício coletivo durante a pandemia de covid-19 revelou que os Ceis do Brasil ainda são muito dependentes de insumos e matérias-primas importados. Assim, a produção de imunobiológicos, fármacos e equipamentos de saúde tem baixo valor agregado e nos torna muito dependentes de países com maior capacidade industrial e tecnológica em saúde, e que gera desequilíbrio na balança comercial, registrado há anos, com déficit estimado de US$ 20 bilhões, quando se soma os royalties pagos por medicamentos.
As agências de fomento à pesquisa e inovação e os governos precisam induzir as universidades e as empresas, de forma regular, a se envolverem com os grandes desafios do SUS, dado que as soluções passam por contribuições de todas as ciências, desde as políticas, jurídicas, humanas, sociais e de educação, passando pelas biológicas básicas e aplicadas, dos alimentos e alcançando as econômicas e aquelas que lidam com o meio ambiente, o desenvolvimento e a produção de equipamentos e insumos para a saúde, até a tecnologia de informação e comunicação.
Finalmente, é sinal de mau presságio constatar que a saúde pública, apesar de figurar entre as prioridades da população para a escolha de governos, tem, paradoxalmente, na classe média e na elite dos servidores públicos dos três poderes a reivindicação permanente para garanti-la de forma suplementar e os pobres estão acostumando-se a pagar por exames complementares e tratamentos.
Nesse contexto, as ações que politizam o acesso aos direitos socioeconômicos fundamentais inscritos na Constituição, como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, é que podem reorientar as agendas do Estado brasileiro, dos governos e da sociedade e, assim, transformá-los em patrimônio nacional.
(*) José Sebastião dos Santos é professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, e Berenice Bilharinho de Mendonça, professora da Faculdade de Medicina da USP