Amazônia na encruzilhada das mudanças climáticas
Por que é que se fala tanto em Amazônia, seja no noticiário, programas de entrevistas, documentários, TV, mídias sociais e jornal impresso? Sim, o Brasil tem outros biomas superimportantes, sobretudo o Cerrado, uma das savanas mais ricas em biodiversidade no mundo, berço das águas do Brasil. Também tem a Mata Atlântica, um hotspot de biodiversidade, com menos de 15% de sua área original remanescente. Então por que falar tanto da Amazônia?
Uma das razões é que a região tem uma importância crucial para a questão das mudanças climáticas globais. Ao mesmo tempo em que é parte das causas das mudanças climáticas, a Amazônia é vítima da mudança no clima. E talvez seja também uma vitrine para soluções de mitigação das e adaptação às mudanças do clima. Vamos por partes.
A Amazônia é parte das causas das mudanças climáticas pois a morte da floresta por conta do desmatamento, geralmente associado a incêndios criados ou estimulados por seres humanos (a floresta definitivamente não pega fogo sozinha!), causa a emissão de carbono da biomassa – sobretudo dos troncos – para a atmosfera na forma de gás carbônico (CO2), contribuindo para o agravamento do efeito estufa. Muito embora em âmbito global as emissões de CO2 por desmatamento contribuam somente com algo em torno de 12% das emissões totais (sendo os 88% restantes causados pela queima de combustíveis fósseis e produção de cimento), no âmbito nacional, as emissões por desmatamento responderam por 27% das emissões do Brasil em 2016. Esse número deve ter aumentado desde então, seguindo o aumento do desmatamento observado nos últimos anos.
A região também é vítima das mudanças do clima pois é a única floresta tropical do mundo considerada como um tipping point (ponto sem retorno) do sistema climático. A hipótese do tipping point amazônico prevê que mudanças climáticas severas na região, causadas sobretudo pela emissão global de gases de efeito estufa, mas também pelo desmatamento, causariam a substituição da cobertura florestal por uma vegetação de savana, floresta seca ou mesmo uma vegetação sem análogos hoje. Já se observa o aumento da duração da estação seca na porção sul da Amazônia. Nessa mesma porção sul, em áreas de mata intocada, também já se observa a gradual substituição de espécies de árvores afiliadas a clima úmido por espécies mais adaptadas a climas mais secos.
Ainda, a capacidade da floresta intocada (ou seja, não se considerando áreas desmatadas ou degradadas) de absorver carbono da atmosfera se reduziu em 30% desde os anos 1990, possivelmente por conta de uma maior incidência de extremos climáticos, sobretudo secas, que assolaram a região em 1998, 2005, 2010 e 2015/2016. A população da região também sofre com esses extremos climáticos e seus impactos na floresta: em recente viagem à Carauari, nas margens do rio Juruá, ouvi relatos sobre uma queda em 90% da coleta de andiroba (cujo óleo é vendido pelas comunidades ribeirinhas para indústrias de cosméticos), por conta de uma cheia recorde em 2021.
A Amazônia também pode ser parte da solução do problema. Essas mesmas comunidades no rio Juruá relataram que agora, no ano de 2022, ao perceberem que uma nova cheia recorde estava a caminho, começaram a coletar os frutos antes da época usual, o que, embora não ideal, lhes garantiria uma renda maior do que aquela obtida em 2021. Isso é apenas um pequeno exemplo a respeito daquilo com que a própria população da região tem muito a contribuir em termos de alternativas de adaptação às mudanças climáticas em curso. Em uma perspectiva mais ampla, a Amazônia é onde podemos provar de maneira inequívoca que é possível haver uma agricultura de ponta aliada a um aproveitamento racional dos recursos com preservação ambiental. É na Amazônia também que se prevê, em âmbito global, a criação das maiores áreas de replantio/restauração de florestas como um meio para se retirar CO2 da atmosfera. A Amazônia pode ainda mostrar ao mundo que é possível ter uma economia pujante, de alto valor agregado, que gire em torno dos ativos da riquíssima biodiversidade da região tropical, com a floresta em pé.
Quando o assunto é Amazônia, temos que olhar para frente, pensar grande, inovar. A revisitação de modelos de desenvolvimento de 40 anos atrás, baseados no desmatamento e em pastagens subutilizadas, apequena nossa inteligência e apequena a importância da Amazônia para a humanidade. Não é porque os países “desenvolvidos” cortaram suas florestas (muitas delas agora em processo de restauração) que nós temos que seguir o mesmo caminho, quando eles mesmos reconhecem esse erro do passado. Não foi isso que trouxe riqueza para eles. E nem para nós.
Por fim, creio também que muito se fala em Amazônia por conta de ela ser uma grande promessa sobre o que muitos de nós esperamos vir a ser como humanidade e sobre nossa relação com o meio ambiente, com respeito e participação ativa dos povos tradicionais. Isso demanda não somente transformações econômicas, mas também culturais. As devidas mudanças econômicas já estão despontando, de maneira tímida ainda, mas estão. Já as mudanças culturais, aquelas que versam sobre a nossa relação íntima e particular com a floresta, essas precisam de mais tempo e esforço ativo de setores da sociedade para ocorrerem.
Um pequeno exemplo sobre essa necessária aproximação cultural com as nossas florestas está no conceito de forest bathing, ou banho de floresta. Trata-se de uma prática oriunda da medicina japonesa, que defende os benefícios para a saúde observados ao se passar tempo de qualidade dentro de uma floresta (p.ex., sem celular). No livro Forest Bathing (Penguin Life, 2018), Qing Li diz que o Japão é o país-floresta e que, por isso, o povo japonês é o povo-floresta. Está na hora de tomarmos para nós esse título, lembrando que nós temos, só na Amazônia, uma área de floresta 20 vezes maior que a do Japão. É hora de darmos o devido valor para esse que é certamente o maior tesouro biológico do mundo.
(*) David M. Lapola é pesquisador efetivo do Cepagri/Unicamp e professor dos programas de pós-graduação em Ambiente & Sociedade (IFCH/Nepam) e Ecologia (Instituto de Biologia). É coordenador do programa de pesquisas AmazonFACE – Experimento de enriquecimento por CO2 ao ar-livre na floresta Amazônica, autor contribuinte do sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e autor principal do primeiro relatório do Painel Científico para a Amazônia (SPA).
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