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Boris Fausto, um “historiador de domingo”

Marcos Napolitano / Jornal da USP (*) | 25/04/2023 08:30

O que poderíamos acrescentar às várias homenagens e balanços críticos feitos ao grande historiador Boris Fausto nos últimos dias, por ocasião do seu falecimento?

Para começar, é preciso reiterar o que já foi bastante dito: Fausto foi seminal nos estudos históricos pós-1930. Como nos lembrou a historiadora Ângela de Castro Gomes, Fausto “trouxe o Brasil Republicano para o estudo da história”. O hoje clássico Revolução de 30, história e historiografia, originalmente uma tese de doutorado, foi publicado em um momento em que a historiografia mal chegava a analisar a Primeira República. Fausto rompeu com este tabu, e lançou as bases para a análise da chamada “era Vargas” no campo da história. Realizando, sem alardes, a tão perseguida interdisciplinaridade entre história, sociologia e ciência política, o livro incorpora diversos tipos de fontes primárias para colocar sob escrutínio a tese dominante na memória histórica, lançada pelo PCB, de que 1930 tinha sido uma “Revolução Burguesa” contra a “oligarquia semifeudal”. Para Fausto, a crise de 1930 fora produto de uma cisão “intra-oligárquica” que abriu espaço para novos pactos de poder e novos projetos para o Brasil, em um processo histórico mais complexo do que se supunha.

A vaga renovadora dos estudos em história social surgida no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 colocou o trabalho clássico de Fausto sob suspeita, deslocando a centralidade da análise sobre 1930 para a agência da classe operária e colocando em xeque a própria existência da “Revolução de 30” como fato histórico, tomando-a como mera armadilha do discurso do vencedor. Para uma geração formada sob o impacto dessa crítica radical, as novas perguntas e metodologias eram bastante sedutoras e respondiam aos anseios de uma geração de historiadores, e aspirantes a tal (como este que escreve), que, paradoxalmente, se interessava mais pelo futuro do que pelo passado. A urgência e a pertinência dessa crítica radical à memória histórica e à historiografia pregressa, entretanto, não conseguiram desbotar a importância do livro seminal de Boris Fausto sobre 1930. Mais de 50 anos depois de sua publicação, seus argumentos e fundamentos analíticos têm muito a dizer e fazem parte da formação obrigatória de estudantes sobre o tema. Eu até diria que, à luz dos ajustes do debate posterior, sua obra até se fortaleceu.

Aliando formação sólida, inteligência analítica, engajamento político e rigor intelectual, Fausto pôde desenvolver uma obra referencial para o campo historiográfico, para além do seu livro clássico.

Nos balanços dos últimos dias, muito se tem falado dos livros monográficos de Fausto. E não foram poucos. Outras obras como Trabalho urbano e conflito social (1977),  Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), publicado em 1984, Negócios e ócios: histórias da imigração (1997) foram muito além da história política, abrindo novas perspectivas para temas como imigração, história oral, história do cotidiano. Seus trabalhos mais recentes articularam memórias pessoais aos estudos de época, flertando com o ensaísmo literário sem perder o rigor historiográfico.

Entretanto, sem prejuízo desses livros referenciais, eu gostaria de sublinhar o trabalho de Boris Fausto como organizador e autor de livros formativos que vão muito além da sua especialidade em temas de Brasil República. Além de assumir, no final dos anos 1970, a tarefa de organizar o terceiro tomo da grandiosa coleção História geral da civilização brasileira (ou seja, os quatro últimos livros sobre o Brasil republicano), Fausto escreveu aquele que considero um dos melhores, se não o melhor, manual de história do Brasil, justamente chamado de História do Brasil (Edusp, 1995). Em uma época em que esse tipo de trabalho já começava a ser desvalorizado pelo rigores métricos da avaliação da produção acadêmica, História do Brasil, em suas várias edições, tornou-se um livro de referência para estudantes de ensino médio e professores do ensino básico, rompendo os limites do público leitor universitário. Não por acaso, Fausto tinha especial carinho por essa obra.

Enfim, Fausto é autor de uma obra alentada e consagrada. Nada mal para alguém que se definia como uma “historiador tardio” (sua formação original era na área de Direito), e também como “historiador de domingo”, dada sua trajetória profissional paralela e peculiar, completamente diferente das trajetórias acadêmicas docentes, delimitadas por fronteiras mais departamentais do que intelectuais, que se impuseram na vida universitária brasileira. Talvez, para além da sua formação, a peculiaridade dessa sua posição no campo acadêmico tenha ajudado Fausto a não ficar refém das limitações burocráticas da carreira ou de modismos teóricos, intervenções performáticas, polemismos vazios, tão comuns nestes tempos atuais.

(*) Marcos Napolitano é professor do Departamento de História da USP.

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