Impactos da pandemia no setor de turismo
Diante da imobilidade imposta por medidas de isolamento social, uma atividade cuja existência depende, elementarmente, da mobilidade humana encontra-se profundamente afetada, tal como têm amplamente noticiado organismos ligados ao setor, estudiosos e imprensa em geral.
Embora, todavia, os impactos da pandemia de covid-19 sobre o setor de turismo sejam evidentes, sua compreensão demanda uma análise multi e transescalar assim como a consideração de aspectos de natureza qualitativa, que levem em conta, por exemplo, as atividades que são características do setor, os diferentes segmentos, a origem dos fluxos, entre outros aspectos.
Segundo cálculos feitos pela United Nations World Tourism Organization (UNWTO), os fluxos internacionais de turistas deverão ter uma queda de 22% no ano de 2020, assim como deverão decrescer entre 20% e 30% as receitas geradas no setor.
Em que pese esses dados revelarem os significativos impactos da crise sanitária mundial sobre o turismo internacional, os mesmos devem ser problematizados frente a outras escalas de análise, como as escalas regional e local. Os fluxos internacionais do turismo de massa e as receitas por ele geradas estão concentrados em algumas regiões e países, os quais já se ressentem pela interrupção abrupta desses fluxos, como apontam dados da UNWTO.
Faz-se necessário também considerar que a dependência econômica de nações, regiões e localidades em relação ao turismo é muito variada. Em se levando em conta a participação das receitas advindas do turismo na composição dos produtos internos brutos (PIBs) nacionais, por exemplo, em Portugal tem-se algo em torno de 13,7%; na Espanha, 12,3%; na França, 9,5%; na Grã-Bretanha 9%; na Itália 5%; no Brasil, 3,7% e nos Estados Unidos, 2,6%.
Por outro lado, para algumas nações e regiões, entre as quais ilhas-Estado conhecidas como destinos internacionais de turistas, o peso do turismo na composição de seus respectivos PIBs é muito maior. A título de exemplo, podemos citar os casos da República das Maldivas (no Índico), onde, em 2019, 32,5% de seu produto interno bruto adveio da atividade turística, ou ainda Aruba (Caribe), com 32%, República de Seicheles (no Índico), 26,4%, e Comunidade das Bahamas (no Atlântico), com 19,5%.
Considerando o drástico efeito da pandemia sobre o setor de turismo, essas ilhas-Estado, assim como algumas regiões muito dependentes da economia do turismo, devem sentir, de forma mais intensa, o desemprego no setor assim como outros efeitos deletérios decorrentes da interrupção repentina e prolongada dos fluxos internacionais de turistas, com repercussões dramáticas sobre suas populações.
Neste momento, julho de 2020, os principais subsetores que conformam o turismo – transportes, hospedagem, agenciamento de viagens e serviços de alimentação e de lazer – foram todos muito afetados, com perdas, em alguns casos, próximas de 100%. Mas também neste caso é preciso levar em conta as escalas envolvidas.
A hotelaria de rede internacional, por exemplo, é formada por grandes corporações, com faturamentos anuais que ultrapassam os bilhões de dólares. Enquanto isso, os serviços de hospedagem regionais/locais dizem respeito, muitas vezes, a empresas pequenas e familiares, sem reservas financeiras que lhe permitam transpor o período de crise sem encerrar suas atividades.
Ressalte-se, também, o fato de que, entre as 20 maiores empresas aéreas do mundo, apenas uma é latino-americana, a Latam, e que o domínio do transporte aéreo internacional está nas mãos de poucas companhias subaéreas, a maioria delas radicada em nações ricas e desenvolvidas, onde têm chances razoáveis de encontrarem a ajuda financeira de que necessitam para se manterem economicamente viáveis. O mesmo naturalmente não se aplica a empresas de transporte rodoviário, majoritariamente nacionais e radicalmente impactadas pela interrupção dos fluxos de viajantes em geral.
Tais ponderações chamam a atenção para o reconhecimento de que estão dadas as condições gerais para o aprofundamento do processo de oligopolização no setor, segundo o qual, em um momento de forte crise econômica, as empresas com maiores reservas e melhores condições financeiras tendem a adquirir parte de suas concorrentes, incapazes de superar as perdas decorrentes da crise.
Evidentemente, isso é socialmente indesejável, considerando-se, por exemplo, no caso brasileiro, a importância local e regional que têm os pequenos negócios, tanto no que se refere à geração de empregos como no que tange à geração de receitas que mormente ficam no lugar ou na região. Além do mais, isso pode ser muito ruim para os consumidores desses serviços, considerando a diminuição da concorrência e o controle concentrado nas mãos de poucos grupos.
O caso brasileiro
Considerando um cenário de reabertura da economia a partir de junho deste ano e estabilização da economia entre outubro de 2020 e outubro de 2021, estudo realizado pela FGV (2020)[1] estima uma perda para o setor em torno de 21,5% no biênio.
Quando, entretanto, se consideram outras escalas de análise e a taxa de dependência econômica do turismo, os impactos da pandemia nas economias regionais e locais, por exemplo, podem ser muito mais expressivos.
Nesse caso, é relevante lembrar que o turismo de massa no Brasil tem a particularidade geográfica de estar densamente concentrado na porção oriental do território nacional, basicamente estados litorâneos, além de Minas Gerais, com uma projeção também razoável sobre os estados de Goiás, Distrito Federal, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Segundo estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2013[2], os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais concentram mais de 50% do total dos estabelecimentos relacionados à atividade turística, mas aqueles com maior taxa de dependência em relação a esse quesito são Rio de Janeiro, Roraima e Alagoas (Sakowski, 2015)[3].
No que se refere ao número de empregos no setor, a taxa de dependência do turismo também difere muito entre os Estados e, de acordo com Sakowski (2015), aqueles com maior dependência do turismo nesse caso eram, no início da década passada, Bahia, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro.
Por outro lado, em se tratando da escala local e em se considerando os 5.570 municípios brasileiros, é importante reconhecer que o turismo tem ínfima ou nenhuma participação na composição do PIB da grande maioria deles.
Enquanto isso, algumas regiões e localidades são fortemente dependentes da atividade, como é o caso de Jijoca de Jericoacoara (CE), Rio Quente (GO) e Fernando de Noronha (PE), onde a taxa de dependência do turismo (TDT), variável emprego, chega, respectivamente, a 71,2%, 63,6% e 61,2% (Sakowski, 2015).
O futuro do turismo
A crise econômica em curso por causa do novo coronavírus já afeta a economia mundial de forma drástica e, em um mundo globalizado, todos sentirão, em alguma medida, seus efeitos, sendo o desemprego e o empobrecimento geral da população mundial consequências anunciadas por diversos especialistas.
Evidentemente, em um quadro econômico como o que se avizinha, a atividade turística, já bastante afetada, possivelmente demandará anos até conseguir recuperar os patamares anteriores à crise tanto em termos de volume de fluxos como de produção de riqueza, como têm previsto organismos internacionais ligados ao setor, como a Organização Mundial do Turismo, agência especializada no âmbito das Nações Unidas.
É esperado que, ao menos nos primeiros meses que se seguirem à decretação do final da pandemia, as pessoas mantenham algum receio de, por exemplo, realizar viagens por transporte coletivo, hospedar-se em estabelecimentos comerciais como hotéis, pousadas, hostels e mesmo visitar atrativos muito procurados e, consequentemente, sujeitos a aglomerações.
Caso a hipótese acima venha a confirmar-se, outra hipótese ganha força, qual seja, a de que fluxos intrarregionais de turistas crescerão mais rapidamente em relação a viagens de longa distância assim como se ampliará o mercado do aluguel por temporada, considerando o isolamento social possibilitado por esse tipo de modalidade de hospedagem.
Se as hipóteses acima se confirmarem, regiões e lugares mais dependentes de turistas originários de países/regiões geograficamente distantes serão mais afetados pela perda desses fluxos.
No Brasil, os principais polos emissores de turistas encontram-se nas regiões Sul e Sudeste, o que poderia beneficiar destinos turísticos já consolidados ou outros emergentes localizados nessas regiões. Enquanto isso, capitais nordestinas, muito dependentes de fluxos do Centro-Sul, sofreriam mais e por mais tempo os efeitos da crise no setor.
Por outro lado, alguns segmentos possivelmente terão uma recuperação mais rápida em relação a outros, como é o caso das viagens corporativas ou o chamado turismo de negócios. Talvez o turismo religioso possa igualmente recuperar-se mais rapidamente em relação, por exemplo, ao segmento de eventos, sejam esses corporativos, culturais, esportivos ou outros, dadas as restrições possivelmente estendidas no tempo à realização de encontros concentradores de massas de pessoas.
É possível também que nações ou regiões que foram mais bem-sucedidas no controle da pandemia convertam esse fato em uma espécie de “selo de distinção de qualidade”, como já vem fazendo Portugal. Nesse caso, um desdobramento inverso poderá ocorrer com o Brasil, considerando, principalmente, a forma como o chefe do Executivo tem se posicionado frente ao tema, comprometendo a imagem do País no exterior pari passu a alta taxa de transmissão da doença, os baixos índices de testagem da população e o crescente número de mortes.
De qualquer modo, os efeitos da pandemia sobre o setor de turismo são inquestionáveis, mas como brevemente analisado, serão diferencialmente sentidos por nações, regiões e lugares. Além disso, sua superação será, muito provavelmente, lenta e gradual. Mas o planejamento dessa recuperação na escala nacional deverá, necessariamente, levar em conta a multi e transescalaridade que caracterizam a atividade.
(*) Rita de Cássia Ariza da Cruz é professora do Departamento de Geografia da FFLCH/USP e coordenadora do Laboratório de Estudos Regionais.