Mitos e fatos na agricultura irrigada (parte I)
Garantir segurança alimentar para todas as pessoas, em um planeta com grandes diferenças sociais, econômicas e ambientais, continua sendo um dos principais desafios da humanidade. Em um mundo onde cerca de 820 milhões de pessoas não têm acesso a quantidade de alimento suficiente para manter níveis básicos de saúde, os estudos indicam que será necessário aumentar a produção de alimentos em cerca de 70%, para atender o acréscimo na demanda mundial prevista para ocorrer no ano de 2050.
O Brasil é um dos poucos países no mundo capaz de elevar a sua produção agrícola sem comprometer o meio ambiente. O País tem mais de 12% das reservas de água doce e algumas das maiores bacias hidrográficas do mundo, mas, mesmo assim, a água tornou-se um fator limitante para o desenvolvimento econômico e o bem-estar do brasileiro.
Estudos projetam que as retiradas de água para fins de irrigação crescerão cerca de 10% até 2050. A água, direta ou indiretamente, é insumo prioritário para todos os setores da economia. O crescimento da escassez hídrica e da competição entre usuários de água representa um sério desafio para os gestores de recursos hídricos na América Latina e Caribe, sendo fundamental estabelecer estratégias de gerenciamento que favoreçam os usos múltiplos.
No caso específico da agricultura irrigada, que é a principal usuária de recursos hídricos, a comunicação é um dos principais entraves para o seu desenvolvimento. É fundamental melhorar a interlocução do setor agrícola com a sociedade, principalmente no que diz respeito ao uso de recursos hídricos. É preciso divulgar informações corretas com base em dados técnicos e análises consistentes, e é isso que será feito nesta série de artigos.
É preciso mostrar de forma clara que é possível crescer de maneira sustentável. A informação incorreta contribui para aumentar a polarização entre os usuários de recursos hídricos, que ao invés de cooperarem entre si, entram em disputas muitas vezes desnecessárias. Água é sinônimo de diálogo, de compartilhamento e de integração. Não deve ser geradora de conflitos, mas sim de oportunidade para o desenvolvimento.
Mitos e fatos
A irrigação consome 70% da água doce da terra. Trata-se de um mito. Justificativa: Primeiramente, para fins de melhorar o diálogo entre os setores usuários de água, é conveniente substituir a palavra consome, que pode trazer a ideia de “destruir”, por utiliza, que traz a ideia de “fazer uso de alguma coisa”. Consumir dá a entender que a água, quando utilizada para atender algum uso, desaparece definitivamente do sistema hídrico. Isso não é verdade. A água retirada de um manancial ficará indisponível para outros usos por um tempo, mas não definitivamente. A dificuldade é saber quando e onde essa água voltará a ficar novamente disponível.
Por exemplo, os estudos indicam que em média 60% do peso de um homem adulto seja devido a água. Isto é, um homem pesando 70kg estará retendo em seu corpo algo em torno de 42 litros de água. Essa água que está retida no corpo dessa pessoa estará indisponível para outro uso por um tempo. A quantidade de tempo depende. Uma molécula de água poderá ficar retida, em média, 10 dias no corpo de um homem que bebe cerca de dois litros de água por dia. Ou seja, depois de 10 dias essa molécula de água voltará a fazer parte do ciclo hidrológico e poderá ser utilizada novamente em algum momento. A água é renovável, mas sua quantidade é finita.
Com relação a outra parte da informação (70% da água doce da terra), os estudos indicam que aproximadamente 71% da superfície terrestre seja coberta com água, totalizando um volume de água de aproximadamente 1.386.000.000 km³. A magnitude desse número é difícil de ser imaginada, principalmente quando pensamos que 1 km3 é igual a 1.000.000.000.000 litros. Essa quantidade de água é praticamente constante. Ou seja, em escala global, a quantidade de água não é variável com o tempo.
Infelizmente, nem toda essa água está prontamente disponível para uso. Cerca de 97,5% dela está nos oceanos. Dos 2,5% que sobram, 76,8% estão nas calotas polares e geleiras, 22,7% são águas subterrâneas e o 0,5% restante está armazenado em outras fontes hídricas, como os rios, que representam 0,006% dos 2,5% e é a água que está mais prontamente disponível para uso. A quantidade de água (vazão) que passa pelos rios do mundo todos os anos é da ordem de 45.500 km³.
A vazão total dos rios brasileiros é algo em torno de 179.000 m3/s. Considerando todos os usos (indústria, irrigação, abastecimento urbano, etc.), a demanda hídrica total é da ordem de 2.083 m3/s. Ou seja, cerca de 1,2% da água disponível, levando em consideração apenas os rios, é outorgada e assume-se que está sendo retirada dos rios. Desse total de água que é retirado, 2.083 m3/s, 52% é para irrigação. Isto é, no Brasil cerca de 0,6% da água disponível nos rios é utilizada pela irrigação.
Resumindo: a irrigação é a principal usuária de recursos hídricos, mas não utiliza 70% da água doce do planeta. No Brasil, a quantidade de água utilizada pela agricultura irrigada representa menos de 0,6% do que existe nos nossos rios.
Sendo a quantidade de água existente na terra constante e muito maior que a quantidade demandada, por que ocorrem os conflitos? Essa pergunta é muito recorrente. O que temos que ter em mente é que a quantidade de água é constante em escala global, mas localmente essa quantidade é muito variável. A água, nas suas diferentes formas, está em constante movimento. A maior parte dessa água se movimenta muito lentamente. Por exemplo, uma gota de água no oceano pode levar mais de 3.000 anos para evaporar, enquanto essa mesma gota ficaria apenas cerca de nove dias na atmosfera antes de se precipitar.
Por outro lado, aquela água que está mais disponível para o nosso uso, as águas superficiais, tem variações grandes em períodos de tempo curtos – dias, semanas ou meses. Essa água é dependente das chuvas. Assim, em um ano, em um mesmo local, a quantidade de água disponível pode ser suficiente para atender a todas as demandas e, no ano seguinte, ser insuficiente para atendê-las. Outro aspecto importante é que as demandas hídricas são crescentes, variáveis e tendem a ser maiores quando a oferta é menor. Os conflitos podem surgir sempre que a demanda for maior que a oferta e a gestão não for realizada de maneira adequada.
Deve-se atribuir prioridades para o uso da água e a irrigação não é uma prioridade. Essa informação é ao mesmo tempo um fato e um mito. Justificativa: Com exceção do abastecimento humano e da dessedentação animal, nenhum outro uso tem prioridade sobre o outro. Sempre deve-se favorecer os usos múltiplos, possibilitando o desenvolvimento de todos os setores.
O que pode acontecer é que em determinadas situações, onde um rio específico já se encontra em estado crítico em termos de disponibilidade hídrica, seja necessário definir usos prioritários para evitar conflitos. A priorização dever ser constantemente acordada pelos usuários nos comitês de bacias, sempre valorizando a aptidão da bacia e sua capacidade de suporte. Existem claramente bacias hidrográficas que tem forte aptidão agrícola, não seria razoável priorizar o desenvolvimento de outra atividade em detrimento da agricultura.
É importante ter em mente que o sistema de irrigação é um instrumento de aplicação de água. O produto gerado pela água da irrigação, em geral, é o alimento. Ou seja, a relevância do produto gerado para a sociedade é que tem que ser considerado no desenvolvimento de políticas públicas e na priorização do uso da água. Sob uma ótica restrita, a irrigação é vista simplesmente como um instrumento para aplicação de água para planta, mas, com um olhar mais abrangente, constata-se que a agricultura irrigada é a base de uma economia e de um modo de vida. A irrigação é uma tecnologia fundamental em qualquer planejamento estratégico que vise segurança alimentar. Não é uma boa estratégia proibir ou limitar de forma aleatória qualquer uso. As prioridades devem ser acordadas pelos usuários, prioritariamente fora de períodos de escassez hídrica.
Toda água utilizada na produção de alimento em áreas irrigadas é retirada de um rio ou de um poço. Dependendo de como é vista essa informação pode ser um mito ou um fato. Justificativa: Se analisada no período seco, sem chuvas, a informação é verdadeira. Mas é um mito se for analisada no período da chuva. Nesse caso, grande parte da demanda hídrica da cultura é suprida via água da chuva. Por exemplo, analisando-se o resultado de 30 anos (1980 a 2011) de demanda hídrica da cultura do milho, com duração de 140 dias, plantado no dia 10 de janeiro, na região do Planalto Central.
Nesses 30 anos, a demanda hídrica média ocorrida durante o ciclo da cultura foi estimada em aproximadamente 546 mm. Isto é, uma área irrigada de 100 ha plantada com milho nessa região demanda cerca de 546 mil metros cúbicos de água. Desse total, cerca de 41% das necessidades hídricas da cultura foi suprida pela água da chuva (média de 30 anos). Ou seja, 223.860 m3 da água necessária veio da precipitação e 322.140 m3 foi retirada dos rios ou aquíferos pela irrigação. A quantidade de água utilizada pela irrigação dependerá basicamente da quantidade e da distribuição de chuva, já que a evapotranspiração é pouco variável. É importante também destacar que a água verde (água da chuva armazenada no solo) mantém todo o ecossistema terrestre não agrícola, com estimativas de uso variando entre 49.000 km3/ano e 56.5000 km3/ano.
Como toda água utilizada volta a fazer parte do ciclo hidrológico, não é necessário fazer gestão de recursos hídricos. A primeira parte da informação é um fato; já a segunda é um mito. Justificativa: A gestão de recursos hídricos consiste em administrar os recursos hídricos, compatibilizando a oferta com as demandas. Não é possível fazer a gestão com base na possibilidade de existência de uma água que está retida (imobilizada) em um determinado uso, pois não se sabe quanto esta água estará disponível novamente para ser utilizada e também não se sabe onde ela estará disponível.
A estimativa da quantidade de água que pode ser outorgada em uma bacia hidrográfica é feita com base em dados históricos de vazão e em procedimentos estatísticos e está sujeita a erros. Para reduzir o risco de falha, a demanda tem que ser muito bem quantificada. Assim, toda água que é retirada do sistema hídrico e fica indisponível para outros usos deve ser computada. Não é possível, por exemplo, contabilizar como parte da oferta hídrica uma água que se encontra na forma de vapor, embora, eventualmente, ela passará para a forma líquida e estará disponível para uso. A gestão de recursos hídricos é uma atividade que traz segurança para os usuários, reduzindo o risco de faltar água.
Para finalizar, gostaria de enfatizar a necessidade de pensar o desenvolvimento de maneira integrada e estratégica, sendo a água e alimento elementos centrais desse debate. Nesse sentido, é importante analisar a capacidade de suporte das bacias hidrográficas e as responsabilidades de cada setor usuário, favorecendo sempre os usos múltiplos e apresentando oportunidade de crescimento para todos. A água não pode ser fator limitante do crescimento, sendo, desta forma, necessário fazer tanto a gestão da demanda como da oferta hídrica.
Comunicando melhor, acredita-se que o diálogo entre os setores irá melhorar e a agricultura irrigada poderá se desenvolver com mais sustentabilidade, contribuindo para a segurança ambiental, hídrica e alimentar, enquanto se produz alimentos em quantidade e qualidade a custos acessíveis para as pessoas.
(*) Lineu Neiva Rodrigues é pesquisador da Embrapa Cerrados.