O jogar na escola em horário nobre
Um hábito que cultivo há algum tempo é o de bisbilhotar o que meus colegas estão realizando. Passar pelas salas de aula lentamente, parar próximo para acompanhar um pouco das dinâmicas das aulas e coisas do gênero. Sei que deveria ter até um pouquinho de vergonha de fazê-lo, mas não resisto, afinal são atividades públicas realizadas por agentes públicos.
Pena que não dê para bisbilhotar mais, por falta de tempo. Aprendo muito. Na maioria das vezes, coisas que posso aplicar ou replicar em sala. Mas dou o crédito ao autor. “Esta técnica aprendi com o professor fulano”, brado em sala de aula. Mas às vezes aprendo também o que não fazer em sala de aula, ainda bem que isto é muito, muito raro.
Outro dia, ao chegar a meu gabinete de trabalho, vejo um professor com um tabuleiro de xadrez com todas as peças montadas em posições estratégicas. De costas, não me viu, absorto que estava nas mágicas jogadas que antevia virem de seu adversário, olhos cravados no quadrado de madeira e nas peças que se encimam. Que movimentos as mãos suadas e ágeis traçariam com as peças, imaginei eu. Que filme lhe passava à frente no momento. Ele, certamente, antegozava ao antever os movimentos táticos que lhe permitiriam chegar sorrateiramente até o rei adversário, que do outro lado se defendia, enquanto perpetrava ataques com suas peças brancas.
Era pouco mais de 16h, e o cara estava envolvido num jogo em horário nobre, com tantas lidas para fazer. Curioso como sou, aproximei-me do rapaz. O professor, lógico, levou um susto de tão concentrado estava, olhos fixos no tabuleiro. E pensei: “Um jogo nobre, em horário nobre, com uma razão muito mais que nobre, desenvolver competências nos alunos”.
“E aí, professor, trabalhando xadrez com seus alunos?”. Como sou fã de qualquer método de aprendizagem que desenvolva diferentes competências, puxei assunto para entender onde as competências se encaixavam na lide do mestre. Foi aí que o professor Leandro Aguiar, colega da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP, com os olhos faiscando de tanto brilho que quase me cegava as faces, explicou-me: aquele era um projeto em que vinha trabalhando havia ainda pouco tempo, desde 2021, visando a contribuir para a formação dos alunos da EEL.
A ideia é desenvolver nos alunos habilidades como memória, concentração, planejamento e capacidade de tomada de decisão pela prática deste lúdico jogo que fascina a humanidade há séculos. Acredita-se que tenha surgido na China, no século 3 antes de Cristo. Conta a lenda que o primeiro registro literário em que consta uma partida é do século 6, no poema persa Karnamak.
Esses inventos são difíceis de datar, até porque muita gente quer arrogar a paternidade a seu país. Mas isto não importa muito ao caso. Fato é que, em 2021, o professor Aguiar criou o Clube de Xadrez. O Clube despertou o interesse de alguns alunos, interesse que se amplificou à medida que acadêmicos da escola começaram a participar de torneios regionais. Fiquei muito feliz, quando ele, com o rosto radiante comentou que, além de terem ficado em primeiro lugar em um torneio, os alunos têm “feito bonito” em outros. Isto, com pouco tempo de atividades do Clube.
A ideia é promover a consolidação junto à Atlética e envolver mais alunos dos cursos da EEL. Atualmente, o projeto desenvolvido pelo professor Leandro oferece treinos de xadrez, às segundas, quartas e sextas, para alunos de todos os cursos da escola. Os treinos, que ocorrem na Área I do campus, são abertos tanto para aqueles jovens que são admiradores da modalidade, mas começam a despertar para o xadrez recentemente, quanto para estudantes que se encontram em níveis mais avançados e “em modo” participam em competições.
Meu entusiasmo com a iniciativa repousa irrequietamente no poder de desenvolvimento de competências importantes para a formação profissional e pessoal de nossos alunos com uma atividade lúdica capaz de promover significativas mudanças intelectuais.
(*) Humberto Felipe da Silva é professor da Escola de Engenharia de Lorena da USP.