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Ou muda a prática de agricultura na região de Bonito ou as maravilhas acabarão

Débora Calheiros (*) | 03/02/2023 08:23

Hoje, 2 de fevereiro, é Dia de Iemanjá, a mãe protetora das águas.

E, numa feliz coincidência, também é o Dia Mundial das Áreas Úmidas, pela Convenção Ramsar de Conservação de Áreas Úmidas de Interesse Internacional, como mostra o cartaz acima.

Neste ano, o tema para reflexão é: “É a hora para a restauração das Áreas Úmidas!!!”

Sim, a hora é mesmo de restauração, recuperação, cuidado…

Pois é, caros leitores, em Bonito, no Mato Grosso do Sul, estamos na contramão.

Estão destruindo os atrativos de ecoturismo do município que é um dos destinos turísticos mais importantes do Brasil.

Mergulhar, flutuar, nadar ou apenas observar, extasiados, as águas cristalinas, translúcidas e os cardumes de peixes passando lentamente bem próximo a você.

Garanto-lhes. Nadar em meio a peixes e banco de plantas aquáticas, em meio a paisagem do cerrado e mata atlântica, é uma das experiências mais incríveis.

Quem ainda não conhece, sugiro fazer um esforço para conhecer e se deslumbrar.

Mas, como em outros locais do Brasil, a conservação ambiental piorou muito em Bonito e demais municípios da região nos últimos anos.

Antes, as suas águas transparentes só turvavam às vezes quando ocorriam temporais mais intensos.

Agora, não. Os turvamentos são bem mais frequentes e maiores.

Eles se devem às enxurradas de lama resultante da perda de solo dos cultivos de grãos em larga escala (soja, milho e arroz) e do extravasamento de rejeitos de minério no entorno dos rios, nas micro e sub-bacias.

Depois das chuvas, as águas ficam opacas, leitosas e até barrentas, demorando para limpar, segundo relatos de moradores e guias de turismo locais.

Esses graves impactos ambientais geram conflitos entre o agronegócio e o ecoturismo, entre o agronegócio e a sensatez, ou a racionalidade.

Para turvar a água como denunciam a imprensa (aqui e aqui) e as redes sociais, os produtores rurais não devem estar aplicando técnicas consagradas, chamadas de “boas práticas agrícolas” (curvas de nível, plantio direto, práticas de conservação de solo), que visam evitar e conter perdas de solo por meio de enxurradas e voçorocas.

Nem mesmo devem estar atendendo à legislação (Código Florestal, 2012); Código Ambiental do Município de Bonito, 2003).

Este mau uso do solo provoca perda de um bem preciosíssimo que levou milhões de anos para ser formado e que já foi considerado como patrimônio nacional numa ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF).

Direito difuso, coletivo, em especial das futuras gerações, à qualidade ambiental. Sem solo, nada se produz.

Este tipo de agricultura ainda faz uso de maquinário pesado que compacta o solo, alterando a capacidade de infiltração da água para recarga dos aquíferos subterrâneos.

É um sistema de produção denominado “químico-dependente”, adicto do uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos, que lançados por meio de pulverização aérea, chegam a grandes distâncias, atingindo a vida aquática, a água potável, as pessoas.

Há denúncias de drenagens em áreas de banhado, secando estes importantes ecossistemas aquáticos, áreas úmidas do cerrado.

Há denúncias de enxurradas drenando áreas de lavoura. Drenagens irregulares de áreas de mineração de calcário e mármore, carreando lama e rejeitos para dentro dos rios da região.

O conflito está instalado e só tem se agravado nos últimos anos.

O não respeito à conservação das Áreas de Proteção Permanente (APPs) — nascentes, banhados e matas ciliares, como previsto nas leis mencionadas acima–, a falta de contenção de rejeitos de mineração e o uso abusivo de agrotóxicos estão gradativa e progressivamente prejudicando a qualidade e quantidade da água, a biota aquática e a socioeconomia dos municípios de Bonito, Jardim e Bodoquena.

Mas os produtores não aceitaram restrições ao seu modo de produção degradador.

Com base nas diretrizes da Lei de Recursos Hídricos (Lei 9433/1997), podemos dizer que estão prejudicando diretamente os demais usos dos recursos hídricos nas bacias dos rios Formoso, Mimoso, Prata e Salobra.

Leia-se: o segmento do turismo de alta importância social e econômica para a região, que depende diretamente da conservação ambiental de toda a bacia hidrográfica. A pesca profissional-artesanal e o turismo de pesca estão proibidos nesses quatro rios citados acima/

Por outro lado, há um zoneamento ecológico econômico (ZEE), que foi elaborado pelo IMASUL em 2009 e atualizado em 2015, em atendimento a uma política pública federal (MMA 2002).

Porém, ele também está sendo desrespeitado. O ZEE contém normas de uso de acordo com as condições locais bióticas, geológicas, urbanísticas, agropastoris, extrativistas, culturais, dentre outras.

Na versão de 2015, o ZEE classifica a Zona da Serra da Bodoquena, onde se encontram os rios mencionados, como Zona de Conservação, e recomenda estímulo à certificação orgânica e recuperação de todas as APPs.

Assim, teria que se promover na região uma agricultura sustentável, implantando a denominada “conversão agroecológica”, passando gradativamente para grãos convencionais e depois para grãos orgânicos, com valor de mercado muito mais elevado, variando de US$ 2 a US$ 15 por saca, dependendo do ano, das cotações do mercado etc.

Mas pagam mais! E ainda por cima contribuindo para a conservação do meio ambiente, da saúde ambiental e humana.

Então, por que os produtores não querem mudar para um sistema de produção mais cuidadoso, amigável, respeitoso, responsável? Difícil entender…

Neste caso, o “poder da grana” não se justificaria. Com esse modo de produção, teriam menor ou até igual custo de produção, não dependeriam de insumos importados, como os fertilizantes, nem de agrotóxicos e nem pagariam royalties para empresas de sementes multinacionais.

A Embrapa juntamente com a Aprosoja e outras instituições parceiras têm em conjunto o Programa Soja Livre (aqui e aqui), justamente para fomentar o plantio de sementes não-transgênicas (“livres de transgenia”), que faz relativamente menor uso de agrotóxicos, em especial o Glifosato, considerado cancerígeno pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Pesquisadores da Embrapa Pantanal tentaram em 2010 promover a produção de arroz orgânico na bacia do rio Miranda – MS, da qual fazem parte as sub-bacias do Formoso, Mimoso, Prata e Salobra, nos moldes do arroz orgânico produzido por uma associação de produtores do Rio Grande do Sul, que recebeu o nome de Arroz Amigo do Taim.

Curiosamente, os produtores de Mato Grosso do Sul não manifestaram qualquer interesse.

Em 2015 e 2017, tentou-se novamente, agora junto a produtores de soja e milho de Jaciara e Diamantino, em Mato Grosso, promovendo a produção de soja livre e a de grãos orgânicos.

Reuniram-se numa mesma sala produtores da região junto com produtores de grãos orgânicos, compradores de grãos convencionais e orgânicos, Banco do Brasil, Ministério da Agricultura, Embrapa Soja, Embrapa Produtos e Mercados, Embrapa Pantanal, UFMT, UNEMAT e MPE, debatendo as vantagens e desvantagens da implantação deste novo modo de produção.

Novamente sem qualquer adesão, mesmo com os compradores ávidos por este tipo de insumo.

Dever-se-ia também fazer usos de instrumentos legais e incentivos financeiros governamentais para assegurar a proteção do solo, da água, da biota, da água potável e, para tanto, garantir outras medidas referentes à salvaguarda dos recursos ambientais que mantêm todos estes benefícios ou, em termos técnicos, “serviços ecossistêmicos” para toda a sociedade.

Atividades econômicas causadoras de degradação ambiental não deveriam ser mais permitidas.

Há de se ter um limite de uso dos recursos naturais para que se possa restaurar o que foi degradado, manter os benefícios que a natureza oferece à sociedade, que usufrui na forma de lazer, turismo, qualidade e quantidade de água, conservação de solos e das áreas de recarga de aquíferos subterrâneos.

Em especial, deve-se atentar para a conservação dessas áreas, pois mantendo a conservação da vegetação nativa que, por suas características de raízes profundas no bioma cerrado, entre outras, facilita o processo de infiltração natural da água, também promovida ao se impedir a compactação do solo pela utilização de maquinário pesado.

Outra iniciativa seria o incentivo ao reconhecimento de Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPN junto aos proprietários, cujas áreas se encontrem inseridas nessas bacias, bem como criação de mais unidades de conservação de proteção integral (sem uso) e também das que permitem uso, desde que sustentável, com base em um Plano de Manejo: as Áreas de Proteção Ambiental – APAs.

Opções, portanto, existem. Precisamos de vontade política, conscientização e sensibilização dos produtores e respeito à legislação.

(*) Débora Calheiros é bióloga, especialista em ecologia de rios do Pantanal e de conservação e gestão de bacias hidrográfica.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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