Privatizações e o mito da maior eficiência do privado
O fenômeno da privatização é um debate recorrente no Brasil e, na maior parte das vezes, está associado ao mito da maior eficiência do setor privado sobre o setor público. É uma doutrina que busca se revestir de uma roupagem científica. A defesa da lógica do privado em detrimento da lógica do público é uma concepção de Estado e, por consequência, uma concepção de Administração Pública também, a partir de um discurso elaborado, reproduzido e repetido à exaustão, até que pareça ser verdadeiro: o discurso que credita eficiência ao setor privado e ineficiência ao setor público.
Antes, porém, é necessário conceituar o que se entende por privatização, uma expressão muito difundida, mas que não tem previsão legal. É, portanto, um conceito em disputa. Privatização é toda a forma de transferência de atividades do setor público para o setor privado, incluindo desde alienações de empresas estatais até transferências de serviços públicos para entidades privadas com fins lucrativos (concessões comuns e parcerias público-privadas) e para entidades privadas sem fins lucrativos (OSs, OSCIPs, entidades filantrópicas, entre outros – essas figuras fazem parte do “fenômeno da onguização”).
No caso brasileiro, é possível destacar fases distintas nos processos de privatizações. A primeira fase, na segunda metade dos anos 1980, durante o governo Sarney, esteve marcada por “reprivatizações” de empresas que já haviam pertencido ao setor privado e foram absorvidas pelo Estado. É possível observar uma segunda fase, iniciada no governo Collor, em 1990, via Programa Nacional de Desestatização (PND), que atingiu também o governo Itamar. A terceira fase foi inaugurada no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), a partir de 1995, e incluiu, também, a partir de 1996, os estados, pela via dos Programas Estaduais de Desestatização (PEDs).
O processo de privatizações ocorrido nos governos Sarney, Collor e Itamar foi basicamente de empresas industriais. Já as privatizações surgidas a partir do governo FHC foram basicamente de serviços públicos.
Interessa a este texto sobretudo essa terceira fase. Ela está associada à estratégia do “Consenso de Washington” (1989), visando transferir patrimônio público para o setor privado, especialmente para as empresas transnacionais. Fizeram parte de políticas exógenas, via Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, e sem nenhuma consulta às populações. As alienações foram estagnadas durante os governos Lula e Dilma, mas as concessões e o “fenômeno da onguização” permaneceram vigentes. Com os governos Temer e Bolsonaro, entretanto, a agenda das alienações foi retomada, sendo reproduzida também para as esferas estaduais e municipais.
A privatização no Brasil foi e segue sendo, acima de tudo, uma resposta pragmática aos problemas macroeconômicos de curto prazo.
As privatizações, em especial dos serviços públicos, visam privilegiar uma lógica que responde a interesses econômicos, além de mascarar a crise do capitalismo brasileiro, com a utilização indiscriminada da privatização como “solução milagrosa”, colocando o Estado e, consequentemente, a Administração Pública, como os grandes vilões da história.
A imagem de que o Estado seria ineficiente e deveria adotar as práticas tidas como virtuosas do setor privado não é apenas um fenômeno brasileiro, mas generalizado. Essa pretensa apoteose do mercado e das empresas privadas é uma vitória da racionalidade instrumental, aquela que se preocupa com os instrumentos, os meios, com os “modos”, sem se importar com os “porquês”. Fortalece-se, portanto, o discurso da racionalidade econômica.
Como a ação do setor privado dentro dos mercados tem por objetivo a maximização do meio instrumental, que é o dinheiro, pelo lucro, a racionalidade econômica é do seu métier por excelência. As empresas privadas são vistas como “instituições divinas”, representantes morais de toda a virtude, associadas a fatores como eficiência, eficácia e produtividade. Essa ética instrumental deve então ser irradiada para toda a sociedade, inclusive e principalmente para o Estado, acusado de moroso e ineficiente, a quem cabe “reformar-se” e replicar a “lógica do privado”.
Esse discurso de maior eficiência do privado, porém, nunca deixou de ser somente uma premissa doutrinária. Aliás, ao contrário, quando houve investigação científica sobre o tema, os resultados foram de outra natureza, apontando para o setor público brasileiro como mais produtivo do que o setor privado.
Essa foi apenas uma das conclusões a que chegou a pesquisa “Produtividade na Administração Pública Brasileira: trajetória recente”, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Avaliou-se, no auge das privatizações no Brasil, a evolução da diferença de produtividade entre esses dois setores. O estudo demonstrou que entre 1995 e 2006 a produtividade no setor público cresceu 14,7%, enquanto no setor privado o crescimento foi de 13,5%.
Conforme o estudo do IPEA, em todos os anos investigados, a produtividade da Administração Pública foi maior do que a registrada no setor privado, com uma diferença sempre superior a 35%. Destaque para o ano de 2006, último ano da pesquisa, quando a Administração Pública teve uma produtividade 46,6% maior do que a do setor privado. De outra banda, 1997 é o ano em que essa diferença foi menor, com uma produtividade do setor público “apenas” 35,4% superior à do setor privado.
Enfim, é necessário seguir estudando o fenômeno das privatizações no Brasil, ainda mais no atual cenário político, em que argumentações de que o setor público é ineficiente voltaram com força ao debate público, acompanhadas de evidentes retrocessos, como é o caso do estado do Rio Grande do Sul, onde a Constituição Estadual foi alterada para permitir privatizações de empresas estatais sem a necessidade de plebiscito.
A retirada da soberania popular da tomada de decisão reforça a tese de que os defensores dessa modelagem possuem pressa e ojeriza ao voto popular. A privatização em curso dos Correios (PL 591/21) na órbita da União, as privatizações da CEEE (já concluída) e da Corsan (em curso), em âmbito estadual, e da Carris (também em curso), em âmbito municipal, são exemplos claros do regresso dessa agenda inconclusa.
Urge um debate sério no Brasil sobre esse tema, um debate apoiado em dados e que inclua a todos. Urge um debate democrático e participativo sobre que concepção de Estado desejamos e sobre que perfil de Administração Pública necessitamos.
(*) Aragon Érico Dasso Júnior é professor do Departamento de Ciências Administrativas e líder do Grupo de Pesquisa em Estado, Democracia e Administração Pública (GEDAP).