Redes sociais potencializam a dinâmica de trabalho no campo das artes
A ideia de uma interatividade no campo das artes visuais teve sua origem nas vanguardas dos anos 60 e 70 com ideais utópicos que se manifestavam no desejo de maior interação entre arte e público por meio de experiências em rede. A arte caminhou com os avanços tecnológicos, e hoje as redes sociais exercem um significativo papel enquanto influência nos processos de conexão da produção artística. De acordo com pesquisadores, porém, é impossível desvincular o impacto do período da pandemia do âmbito artístico, que exigiu novas intervenções para dar continuidade às atividades.
Grande parte da produção da arte está assimilando e incorporando as ferramentas digitais na poética dos trabalhos, analisa Bruna Fetter, professora e pesquisadora de ‘sistêmicas da arte’ no Instituto de Artes da UFRGS. “Vejo um grande impacto, mesmo, no circuito artístico, nas formas de trabalhar e produzir arte que o contato tão íntimo com o ambiente digital propicia, no acesso à informação, na ampliação da rede de relacionamentos e contatos. Além disso, as possibilidades de alcance de público se multiplicam exponencialmente no digital”, diz.
Maria Amélia Bulhões, crítica de arte e professora titular do Departamento de Artes Visuais da UFRGS, investiga relações da arte contemporânea no ambiente digital, e recentemente lançou o livro “Desafios: Arte e Internet no Brasil” (2022). Nas suas pesquisas mais recentes em relação ao uso das redes sociais no campo artístico, visualizou que artistas que não usavam as redes para divulgar seu trabalho passaram a fazê-lo, conectando também pessoas que não necessariamente são do campo. “Houve uma espécie de democratização do acesso a uma série de conteúdos, o que foi muito importante”, avalia. Em sua pesquisa, também mapeou que muitas galerias e museus passaram a ter mais presença nas redes sociais, aumentando o público que acompanha a produção artística.
Uma nova linguagem para as artes cênicas
Lilian Maus, artista, pesquisadora e professora do Departamento de Artes Visuais da UFRGS, destaca que o teatro foi o campo mais prejudicado pela pandemia, por ser da ordem da presença e não tão reproduzível como as demais áreas artísticas. Nesse sentido, grupos das artes cênicas começaram a adaptar seus trabalhos para o digital, com processo criativo voltado para o âmbito das redes. É o caso do GRUPOJOGO, de Porto Alegre, que se aventurou nesse formato de produção artística a partir da pandemia. “A gente sentiu a necessidade de digitalizar todos os nossos trabalhos e os tornar acessíveis às pessoas”, explica Alexandre Dill, diretor do grupo.
O grupo já investigava a digitalidade enquanto processo criativo dentro da cena com o uso de câmeras, transmissões ao vivo e outras tecnologias do audiovisual. Na ausência dos palcos para juntar o público, criaram projetos paralelos aos espetáculos, como vídeos de até 1 minuto para o Instagram. “A gente acreditava que não era possível só pegar a gravação dos espetáculos e transmitir. Não era suficiente para as mídias sociais, porque tem outra linguagem, mais rápida. E um espetáculo de 1h30min, dentro das redes, fica difícil de acompanhar”, pontua Alexandre.
Espetáculos presenciais que há pouco haviam saído de cartaz foram recriados para as redes sociais, como Deus é um DJ – logo esse, que tinha no seu fundamento uma crítica à autoexposição na internet. Já o espetáculo Prédios espelhados matam passarinhos passou pelo processo de apresentação presencial e exibição online simultaneamente. “Percebemos que começou a funcionar, os nossos seguidores deram uma aumentada, a gente começou a ter mais alcance e a investigar esse lugar da internet”, diz o diretor.
Para auxiliar a investigar e entender como funcionam as plataformas, um especialista juntou-se ao grupo para fazer o tráfego pago das publicações do Instagram e Facebook e o gerenciamento das mídias por meio de plataformas de distribuição. Hoje o GRUPOJOGO é considerado referência no trabalho de investigação cênica com as redes sociais. “A gente furou a bolha de quem só costuma assistir a espetáculo presencial e não estava acostumado a assistir [pelas redes sociais], e também acabou atingindo outras pessoas que não iam a espetáculos ou não conheciam o grupo.”
Alexandre diz que, na pandemia, as redes sociais foram cruéis com os grupos de teatro, por motivos que incluem a falta de interesse nas redes, a falta de acesso a equipamentos de qualidade para as produções e a dificuldade de entender como as redes funcionam.
Nessa contramão, há grupos que estacionaram os trabalhos teatrais nas redes no período pandêmico, como a Cia Rústica de Teatro. Patrícia Fagundes, dramaturga e diretora do grupo, defende que a cena e a arte viva se dão no encontro – presencial – entre pessoas que dividem o mesmo espaço-tempo. “Existe uma relação que a gente faz de estar junto, olho no olho, ter a proximidade com o público. Por isso, a gente não se ‘redescobriu’, se ‘reinventou’ no online”, justifica. O grupo chegou a realizar uma versão digital do espetáculo Desmedida Noite, estreado em 2018. Mas, nas redes sociais, não vingaram.
Agora, com o arrefecimento dos casos de covid-19 e as atividades artísticas a todo o vapor, o Instagram da Companhia foi retomado para publicar os espetáculos produzidos, como Cabaré da mulher braba, em cartaz durante o mês de março, e a estreia de Cabaré do amor rasgado em abril.
Patrícia vivenciou uma realidade na divulgação de atividades artísticas totalmente diferente em ambiente pré-redes sociais. No final dos anos 1980, quando começava a fazer teatro, levava em mãos envelopes de divulgação impressos aos veículos de comunicação. “Hoje a imprensa se modificou. Tem menos espaço no jornal para a área da cultura”, diz. E complementa: “Hoje não divulgar o trabalho de artes cênicas pelas redes sociais é muito complicado, é onde a gente fala com o nosso meio”.
O processo criativo para o âmbito das redes
Katarine Rech, estudante do 6.º semestre de Artes Visuais na UFRGS, trabalha com tinta sobre tela e produz quadros autorais e sob encomenda. No início da faculdade, em 2020, criou uma conta no Instagram para dar visibilidade ao seu trabalho. “Achei a rede social mais apropriada porque é mais voltada ao comércio do que as outras. Criei essa conta e estudei muito sobre como crescer no Instagram”, conta. Ela foi, então, aplicando as técnicas que aprendia – uma delas, a publicação constante no perfil. Com um ano de conta, teve o primeiro vídeo viralizado, com 300 mil acessos. O número de seguidores foi aumentando aos poucos e já ultrapassa os 230 mil. “Hoje, tenho a agenda sempre lotada para uns quatro meses, pelo menos”, diz Katarine sobre as encomendas, que acompanharam esse crescimento.
A maioria dos seus vídeos registram o próprio processo artístico em vez de apenas a obra finalizada. Em um reels, produziu uma releitura de A noite estrelada, do pintor neerlandês Vincent Van Gogh, em uma paisagem de Veneza. Atualmente, o post soma quase 3 milhões de curtidas e 16 milhões de visualizações.
Atingir um saldo positivo com a divulgação das artes nas redes sociais envolve, além do domínio de ferramentas da plataforma, muitos testes. “O uso das trends não funcionava comigo”, relata Katarine sobre seguir as fórmulas que se tornam tendência nesse ambiente. “Percebi que, ao narrar uma história, o processo de fazer o quadro e as minhas dificuldades, as pessoas se interessam mais, e dá mais engajamento.” Ela também usa áudios que estão em alta na plataforma, além de priorizar a narração dos vídeos na sua própria voz, em vez da “voz do Google”. ”Torna tudo mais pessoal”, justifica.
Seus vídeos e posts variam no alcance e interações, mas atingem cerca de 100 mil visualizações. Ultimamente, ela tem publicado três vídeos por semana, focando no que mais atrai seus seguidores. Ela investe mais em vídeos do que fotos, pois alcançam mais usuários. Há pouco, também criou uma conta no TikTok e no YouTube. É necessário ter certa frequência nas postagens, mas Katarine adverte: “Não adianta ficar postando qualquer vídeo e de qualquer jeito todos os dias que dá menos engajamento. É melhor focar teu tempo em vídeos bons”.
O ilustrador e quadrinista Pablo Aguiar, formado em Design e Comunicação Digital, começou a publicar em sua conta quadrinhos das entrevistas que realizava com moradores de Alvorada. A cada foto postada, ganhava mais seguidores. Entre Instagram, Twitter e Facebook, o retorno no Instagram é mais regular, de acordo com o dono da conta que tem quase 20 mil seguidores. A sua publicação mais acessada foi de uma entrevista que fez com o pichador porto-alegrense Toniolo – atingiu 13 mil curtidas e 36 mil acessos. A média de interações na sua conta, de acordo com o profissional, é de 2 mil curtidas; já o alcance, de 10 mil usuários.
O quadrinista, porém, lembra que seu trabalho não chega a todos os seguidores por causa da dinâmica do Instagram de priorizar vídeos. “Eu sempre faço imagens. Lamento que acaba limitando meu alcance, porque é uma das principais ferramentas do meu trabalho.” No Instagram, seus quadrinhos são pensados 100% para a plataforma: são 10 imagens – número máximo do “carrossel” em uma publicação – e no tamanho exato do quadrado da imagem. “Ao mesmo tempo que te ajuda, te limita também. Não tem como driblar, tem que aceitar e pensar em alternativas para alcançar o público”, emenda.
Mas, de forma geral, Pablo enxerga essas plataformas como espaços democráticos para o trabalho de quadrinistas, antes restrito às editoras. “As redes sociais foram muito importantes para que eu me tornasse mais conhecido e para que oportunidades de trabalho acontecessem. Pude chegar a mais pessoas, em lugares fora da minha cidade, e muito rápido.”
Além de promover a democratização da arte, as redes sociais também potencializam narrativas contra-hegemônicas. É o que a artista Mitti Mendonça está construindo na sua trajetória com a arte visual e têxtil registrada na conta do Instagram. Ela criou a página há seis anos para compartilhar referências de mulheres feministas negras e fomentar poéticas negras sobre ancestralidade e memória familiar, e com o passar dos anos a conta tornou-se um espaço em que divulga suas produções na pintura e no bordado, como um “diário virtual”. Por também receber propostas profissionais de marcas, usa a conta como fonte de renda.
Mitti percebeu que, recentemente, o Instagram não tem entregado muitos conteúdos seus, mesmo que pensados estrategicamente. Mas isso não a preocupa. “Vou querer viralizar? Esse é o meu objetivo? É fazer dancinhas? Isso não faz parte do que eu acredito ou o que quero criar para as pessoas nas redes sociais. Mas, sim, pensar outras formas criativas”.
Mitti lembra de como os algoritmos ainda privilegiam postagens de artistas brancos. “Quem faz o algoritmo são pessoas brancas”, critica. Assim como faz, aconselha que o ideal é o artista encontrar formas saudáveis de usar as redes sociais e em um ritmo próprio, sem se comparar com os outros, encontrando uma linguagem para se comunicar com seu público e ter objetivos bem definidos. “Não se pode deixar levar pelos números, porque o algoritmo quer que a gente impulsione e pague pra chegar em mais pessoas.”
Lilian Maus lembra que os artistas não escapam da censura das plataformas e que muitas publicações são restringidas quando se resolve trabalhar com elementos considerados polêmicos nesse âmbito. Em 2018, a artista, pesquisadora e curadora Rochele Zandavalli aderiu ao movimento mundial #FREETHENIPPLE (“liberte o mamilo”, em português), que visa desvincular a objetificação, obscenidade e pornografia da representação do corpo feminino por meio da crítica à censura imposta nas redes sociais, cujas ferramentas detectam e bloqueiam imagens contendo mamilos femininos, por exemplo.
“O corpo é constantemente violentado nesse fluxo, e o mamilo associado necessariamente à pornografia, quando na maioria das vezes representa nossa natureza, nossa verdade, nossa força”, diz a artista. Ela publicou em seu Instagram e Facebook uma apropriação e compilação de recortes de imagens que apareciam no seu feed. Rapidamente, ambas as plataformas retiraram o conteúdo, alegando nudez imprópria. “Ou seja, o vídeo que denunciava censura foi censurado várias vezes. O louco é que eles censuraram a censura, pois todos os mamilos nesse vídeo já estavam previamente censurados com tarjas ou coisas do tipo”, relata.
Embora pouco trabalhe com nudez, sexualidade ou imagens de cunho pornográfico, Rochele sofreu censuras também em outros posts, e não percebe avanços nas plataformas para cessar esse tipo de restrição. “O interessante é perceber que existe muito conteúdo sexista nessas redes, erótico até, e que continua circulando. O algoritmo é supertaxativo com mamilos femininos”, observa.
O “trabalho extra” para o artista
Apesar da importância de se adequar para não ficar de fora das transformações, Lilian acredita que produzir conteúdo para as redes sociais pode ser “desgastante” para o artista e que é necessário ter disciplina ao usar a plataforma inteiramente para esse trabalho. “Dependendo do tamanho da trajetória e em que pé da carreira que está, ajuda muito pouco, na verdade, se você já conhece as pessoas do circuito e as instituições”, pondera. Ela acrescenta que o artista deve se questionar de que forma o trabalho está rentabilizando ou apenas tomando o tempo pessoal.
A diretora da Cia Rústica, Patrícia Fagundes, pondera sobre sua experiência: “Às vezes, acho divertido fazer algumas séries de vídeos. Tem uma ação criativa que se relaciona com a obra da cena, uma dimensão que envolve outro processo criativo. Outras vezes, é pesado esse trabalho. Tem que divulgar, divulgar, divulgar”. Para ela, essa carga excessiva de trabalho torna-se mais uma das “armadilhas” do capitalismo, no sentido de ter mais um trabalho para fazer e nunca terminar, além de ter de estar constantemente promovendo a si próprio e até estimulando a competir por quem tem mais seguidores.
Rochele segue a mesma linha: “O problema, me parece, é que cada vez mais esse alcance de público e difusão de obras não é orgânico nas redes, ele é impulsionado, via patrocínios e dinheiro”. Para a artista, cada vez mais plataformas como o Instagram têm se tornado comerciais, com algoritmos programados para distribuir certo tipo de informação. “O que me incomoda é isso, ser uma informação paga, uma rede que funciona de forma bem restrita e capitalista. E também é crítica a potência que têm de banalizar o impacto e o entendimento das imagens, isso está evidente”, acrescenta.
“Às vezes penso: eu não quero ser instagrammer! Eu sou professora e artista. Isso [ser instagrammer] já é outra profissão”, desabafa Patrícia. Ao mesmo tempo, ela reconhece que já faz parte da realidade dos artistas. “Tem suas vantagens, e não dá pra dizer que ‘eu não entro em rede’. Tem gente que diz isso. Bom, está fora de uma grande parcela da realidade do mundo.” Alexandre, a partir da experiência do GRUPOJOGO, se enxerga numa posição de refém das redes sociais: “Parece que, ‘se eu não estiver nelas, eu não existo’.
“Acredito que as plataformas possam auxiliar a divulgar o trabalho para um público maior e mais distante, mas é preciso ter inteligência e também não ficar se medindo só por isso. Conheço artistas com trabalhos elaborados e incríveis, e que mal recebem likes e retorno nas redes, enquanto alguns com um trabalho bastante óbvio e fútil têm milhares de seguidores” - Rochele Zandavalli
Maria Amélia pontua que qualquer grupo pode se beneficiar das redes. Julga necessário, por isso, um posicionamento crítico em relação às plataformas, por não serem tão democráticas devido ao cerceamento em termos de língua, linha de internet e algoritmos. Lilian, por sua vez, sublinha que o circuito de arte e as suas instâncias têm os seus valores estabelecidos, diferentes dos do Instagram, sendo o público mais geral e que não compreende a valorização de um artista. Acha, portanto, que o trabalho artístico nas redes não se encaixa em qualquer perfil de artista.
Rochelle concorda: “Muitas vezes meus trabalhos são táteis, pequenos, frágeis. No caso da minha obra, que é muito analógica e delicada, a experiência direta não pode ser substituída pela virtual. Sofro quando me falam que viram minha exposição pelo Instagram.” Bruna, por sua vez, arremata: “Obviamente a experiência não é a mesma, a atenção fica compartilhada, o contato direto com a obra se perde, mas se abrem pontes interessantes a partir dessas possibilidades. Não me parece que devemos pensar o presencial versus o digital, mas, sim, um como complemento à atuação e ao alcance do outro”.
(*) Leticia Pasuch é estudante de Jornalismo na UFRGS.