Reduzir desigualdades. Se não agora, quando?
Em meio às diversas visões de mundo e concepções econômicas ou de modelo de Estado, o combate às desigualdades socioeconômicas surge como um possível mínimo múltiplo comum para que o diálogo ocorra. Evidência disso, uma pesquisa da Oxfam Brasil (2019) aponta que 94% dos brasileiros concordam que os impostos pagos pela população devem ser usados em benefício dos mais pobres, enquanto 86% diz que o progresso do País está diretamente ligado à redução da desigualdade socioeconômica.
Porém, enquanto o debate segue em alta – mais ainda diante da pandemia da covid-19 –, os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) colocam o Brasil como o sétimo país mais desigual do mundo. Ainda, o Brasil fica em segundo lugar (atrás apenas do Catar) como país com maior concentração de renda entre o 1% mais rico, “a parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda total do país; e a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda”.
No entanto, se o combate às desigualdades socioeconômicas nos une enquanto brasileiros, por que seguimos no topo do ranking da desigualdade mundial?
Estrutura e práxis
Ao longo do texto da Constituição (1988) encontramos quatro vezes a palavra “desigualdade”: (i) no artigo 3º, inciso III, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” como objetivo fundamental da República; (ii) no artigo 43, “visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais”; (iii) no artigo 165, § 7º, como objetivo do orçamento e do plano plurianual, a redução de “desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional”; e (iv) no artigo 170, item VII, estabelecendo como princípio da ordem econômica a “redução das desigualdades regionais e sociais”. Sendo que para se alcançar tais objetivos deve-se ainda cumprir os cinco princípios da administração pública (artigo 37): a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.
Porém, é especialmente na retórica da eficiência onde ocorre um sequestro da narrativa que busca justificar o distanciamento do Estado como instrumento de enfrentamento às desigualdades existentes, forjando uma incerteza quanto a quem será responsável por tal papel. Aliás, se não o Estado, quem?
Exemplo disso, no campo econômico, no planejamento e no orçamento é comum ouvir o discurso da austeridade – isto é, de “corte de gastos” –, para uma eficiência das contas públicas, defendido por dois argumentos: (i) de que o ajuste fiscal poderia atrair investidores estrangeiros, por fazer do País exemplo de bom pagador; e (ii) em referência ao orçamento doméstico como metáfora, fala-se que “não se pode gastar mais do que entra no lar”. Nesse sentido, submete-se o planejamento estratégico e a composição do orçamento público à política de ajuste fiscal permanente, tratando investimentos a áreas sensíveis como se fossem apenas gastos a serem cortados em função da eficiência.
Um ajuste fiscal, porém, não melhora necessariamente a confiança de investidores. Pelo contrário, como o Estado também realiza compras e consome de empresas diversas – além de financiar programas de renda ou incentivo fiscal que resultam em consumo das famílias –, o “corte de gastos públicos” resulta, muitas vezes, em redução da demanda, dificultando o investimento por não existir expectativa de lucro por parte do empresário.
Quanto à metáfora do orçamento doméstico, os economistas Pedro Rossi, Esther Dweck e Flávio Arantes (2018) escrevem: (a) diferente das famílias, o governo tem capacidade de definir seu orçamento, sendo a arrecadação uma decisão política e, por exemplo, possível escolher “tributar pessoas ricas ou importações de bens de luxo, para não fechar hospitais”; (b) também diferente das famílias, “quando o governo gasta, parte dessa renda retorna sob forma de impostos”; e (c) as famílias não emitem moeda, títulos e não definem taxas de juros das dívidas que pagam, diferente do governo.
Portanto, no campo econômico, a política de “corte de gastos públicos” – enquanto sequestro da narrativa da eficiência –, sequer é eficiente, eficaz ou efetiva, pois não gera necessariamente desenvolvimento econômico e ainda acentua desigualdades ao limitar estímulos fiscais aos que mais precisam. Na mesma linha, no campo do direito financeiro, os diversos instrumentos normativos – haja vista a própria Constituição –, devem estar a serviço do povo. Mas, se além da percepção das desigualdades evidencia-se a ingerência econômica, por que não usar tais normas e instrumentos a serviço do povo? Se não, a serviço do quê?
Coesão e eficiência a serviço do povo
Ainda que exista coesão – concordância – dos brasileiros quanto à necessidade de se enfrentar desigualdades socioeconômicas, nossa coalizão – articulação – para executar tal enfrentamento segue dispersa, muito pelo sequestro da narrativa da responsabilidade fiscal e social. Isso porque, enquanto os símbolos seguem emaranhados e os instrumentos normativos são reduzidos a funções meramente procedimentais ou técnico-deterministas, os próprios mecanismos de participação social, como audiências públicas e plataformas de controle e fiscalização, seguem esvaziados ou engessados, limitando a expressão inclusive para se combater tais desigualdades.
Além disso, reduzir o papel do Estado apenas à eficiência como destinação técnica dos recursos contraria um conjunto de normas que constitui a responsabilidade fiscal e social, por exemplo as Normas do Direito Financeiro (lei 4320/1964), a Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar 101/2000) – mais adiante com a lei complementar 131/2009, a lei complementar 156/2016 e o decreto 7185/2010 –, o Sistema de Planejamento e de Orçamento Federal (lei 10180/2001) e o acesso à informação (lei 12527/2011). Isto é, sendo o orçamento não apenas uma lei recomendatória, mas um conjunto de normas a serem estrategicamente gerenciadas, há valor vinculante e, portanto, demanda planejamento e discussão em sua totalidade: do financiamento à distribuição.
No entanto, como recorda o professor Marcelo Arno Nerling, “o exercício da cidadania não decorre de uma ‘lei natural’”, pelo contrário, “pressupõe de valores que inspirem e orientem a conduta de cidadãos livres, ativos e responsáveis, que têm vontade de Constituição”. Nesse sentido, a coesão social, por si só, tampouco é garantia de uma sociedade melhor, mas é a partir do exercício da cidadania que tal coesão social pode construir arranjos estruturais menos desiguais e mais democráticos para a sociedade.
Para tanto, é preciso encarar a responsabilidade fiscal e social para além de frases de efeito, incorporando-as como instrumento e objetivo estratégico, mais ainda durante crises. Dessa forma, superar a falsa polarização entre eficiência e combate às desigualdades, pois quão mais o Estado seja eficiente, mais recursos ele poderá utilizar para atender a população de forma mais equânime; e a equidade, por sua vez, torna-se pré-requisito para propiciar condições de controle e participação social, fortalecendo a eficiência estrutural, pois gestão planejada e transparente previne riscos e corrige desvios (artigo 1º, § 1º da lei complementar 101/2000).
Nesse sentido, o esforço deve estar em identificar necessidades enquanto nação, constituindo projeto que ouse inverter a pirâmide tributária brasileira, hoje extremamente regressiva e desigual. Ainda, somar forças ao debate de proposições históricas, como a renda básica através de especialistas como Leandro Teodoro Ferreira e a taxação das grandes fortunas, ou a contribuição social emergencial sobre altas rendas, reafirmada pelos especialistas Fábio Pereira dos Santos e Ursula Dias Peres.
Amadurecendo o debate e fazendo das leis mais do que checklists técnicos, talvez seja possível exercitar a gestão democrática, ampliar a transparência e fazer do Estado um instrumento eficiente de enfrentamento às desigualdades. Até porque, se não agora, quando?
(*) Ergon Cugler é pesquisador da EACH/USP, associado ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP) e ao Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip).