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Rita Lee, agora só falta você…

Francirosy Campos Barbosa / Jornal da USP (*) | 20/05/2023 08:30

"Comunicamos o falecimento de Rita Lee, em sua residência, em São Paulo, capital, no final da noite de ontem (8/5/2023), cercada de todo o amor de sua família, como sempre desejou. O velório será aberto ao público, no Planetário do Parque Ibirapuera, na quarta-feira (10), das 10h às 17h.” Desde que vi o anúncio do especial organizado por Sergio Groissman no programa Altas Horas, na TV Globo, no mês de abril, senti que ela estava partindo, e essa era a notícia que muitas de nós (leia-se nós como nós mulheres) não queríamos ler, a partida da rainha do rock brasileiro.

Toda mulher da minha geração é meio Rita Lee. Já podemos mudar a letra da música de Rita de toda mulher é meio Leila Diniz, para toda mulher é meio Rita Lee. A menina-mulher Rita Lee Jones revolucionou nossas vidas, dizendo que mulher é um bicho esquisito, todo mês sangra, naturalizou para nós a menstruação, os fluidos femininos, nossa emoção teleguiada pela paixonite que não tem cura, quem não tem culpa pela volúpia. Talvez um dos legados de Rita é nos tirar a culpa, a “culpa” de sermos mulheres descritas como frágeis, sem direito ao prazer, a construir sua própria carreira profissional. Ela nos mostrava as nossas forças e fraquezas, levezas e intensidades de forma ímpar sem perder o prazer em tudo e cantava: mas nada disso importa/ vou abrir a porta para você entrar/ beijar a minha boca até me matar de amor (corre lá no acústico da Rita e escuta o povo cantando essa canção, depois volta e segue lendo).

No colégio de freira em que estudei na Vila Mariana (mesmo bairro em que Rita nasceu e estudou em vários colégios, menos neste), Rita Lee era vetada nas apresentações de dança, mas eu seguia insistindo em colocar sua música Lança Perfume (Lança, menina, lança todo esse perfume/ Desbaratina, não dá pra ficar imune/ Ao teu amor que tem cheiro de coisa maluca / Vem cá, meu bem, me descola um carinho/ Eu sou neném, só sossego com beijinho). Queria dançar e patinar essa música, em uma linda coreografia imaginada, mas nunca concretizada. Como poderíamos entoar vê se me dá o prazer de ter prazer comigo? Sinceramente? Nunca! (risos).

Com 12, 13 anos não sabíamos nada de prazer sexual, era prazer de sermos adolescentes se achando muito adultas (risos), desbaratina tinha muito mais a ver com a nossa conduta despojada da época. Essa música embalava nossos 13 anos, com patins, e cantando alto quando entrávamos nas aulas de Educação Física que nos ensinava a marchar (o chuta, levanta, virouuu ressoa dentro de mim), ainda resquício da ditadura militar. Só fui entender o Vê se me dá o prazer de ter prazer comigo e Me deixa de quatro no ato, me enche de amor adulta, e que delícia saber, sentir, que o prazer foi cantado por uma mulher, que domina o ato sexual, o prazer.

Na adolescência o projeto era levar uma vida sossegada, gostava de sombra e água fresca… assumir meu cabelo raspado de um lado, minhas roupas coloridas, hippies, achava lindo cantar isso e me reconhecer como diferente, eu sabia ser diferente e gostava disso… Foi quando meu pai disse filha: você é a ovelha negra da família/ Agora é hora de assumir e sumir/ Baby, baby…” Nossas fitas cassetes eram rebobinadas mil vezes, girávamos com a caneta, pela pressa que tínhamos em ouvir de novo a nossa música preferida.

Ali, nasciam várias mulheres, se constituíam mulheres, tornavam-se mulheres a la Simone de Beauvoir. O feminismo já era presente na vida de muitas, mas a gente no máximo cantava Por isso não provoque/ é cor de rosa choque./ Sexo frágil, não foge à luta/ e nem só de cama vive a mulher…”. Já tínhamos estabelecido o mantra de Rita, que o tal sexo frágil não fugia à luta, e sabia que não queria luxo, nem lixo, meu (nosso) sonho é ser imortal, quero saúde para gozar no final.

Rita Lee nos ensinou esse feminino debochado, prazeroso (que sente e dá prazer) e com ela fomos envelhecendo, fomos descobrindo que sexo e amor nem sempre são a mesma coisa, nem carregam as mesmas conotações e cores. Amor é cristão, sexo é pagão/ Amor é latifúndio, sexo é invasão/ Amor é divino, sexo é animal/ Amor é bossa nova, sexo é carnaval. É claro que hoje sabemos que amor e sexo são isso e muito mais, como ela dizia: Sexo é isso, amor é aquilo e tal e coisa, e coisa tal… Há sempre muitas formas de viver o que é da vida, do corpo, dos sentidos. Encontramos outros sentidos do feminino, cantando Pagu: porque nem toda feiticeira é corcunda / Nem toda brasileira é bunda / Meu peito não é de silicone / Sou mais macho que muito homem”.

Envelhecer para Rita foi meio feitiçaria, as mulheres pós-menopausa (categoria que descobri recentemente) sabem os mistérios de não ter mais menstruação e sabem também que há vida pós-menopausa. Felizmente, o mito da mulher infértil caiu, porque fertilidade não é apenas gerar uma vida, mas gerar coisas belas, produzir, continuar existindo em sua potência, sua frequência. É libertador descobrir-se “feiticeira”, e isso nossa musa também nos incentivou, aceitando a idade, aceitando as limitações do corpo e mudando o foco da vida, quando se aposenta dos palcos, dedica-se à convivência com os bichos, plantas, netos e produzindo outras coisas… é outra sintonia do viver feminino. Aliás, Rita tinha certeza de que fez muita gente feliz, e hoje podemos dizer que sim.

Rita Lee em Reza vai abençoando e afugentando o mal: Deus me acompanhe (Deus me acompanhe)/ Deus me ampare (Deus me ampare)/ Deus me levante (Deus me levante)/ Deus me dê força (Deus me dê força). Padre Julio Lancelotti revelou semana passada que Rita fez uma doação em roupas para sua paróquia em 2020, durante a pandemia. Ela que cantava contra a caretice, mas se revelava no amor ao próximo, se entregava ao amor como se entregava ao trabalho. Soube amar, ser companheira, ser mãe e nos encantar com suas melodias.

Desculpe o auê, esse texto é muito do meu “eu”, com “nós” mulheres…

Rita, minha companheira de sonhos, de baladas, de amores platônicos, de vida vivida… seguirei cantando:

Desculpe o auê
Eu não queria magoar você
Foi ciúme, sim
Fiz greve de fome
Guerrilhas, motim, perdi a cabeça
Esqueça

Obrigada, Rita Lee Jones por me (nos) ensinar

No ar que eu respiro
Eu sinto prazer
De ser quem eu sou, de estar onde estou
Agora só falta você, yeah, yeah.

(*) Francirosy Campos Barbosa é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.

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