STF, novo solista e sobrevivência tradicional
Finais de ano costumam ser tempos de reflexão, de avaliar o passado e de projetar o futuro. Não é diferente com as instituições, inclusive com a corte de maior autoridade no país. O Supremo Tribunal Federal (STF) encerra este ano de 2021 nos holofotes, em grande parte em razão da nomeação de novo ministro para compor seus quadros.
A nomeação de André Mendonça para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello foi fonte de polêmica ao longo do meio ano que se transcorreu entre a indicação presidencial e a confirmação pelo Senado neste mês. Em primeiro plano, ficaram as preocupações com o limite entre a dimensão privada da religião e a esfera pública do Direito e da política, já que o presidente Jair Bolsonaro havia manifestado ainda em 2019 a intenção de nomear um ministro “terrivelmente evangélico”, nas suas palavras, para a corte. André Mendonça fechava com o perfil buscado pelo governo: além de ter atuado como Advogado-Geral da União e como Ministro da Justiça alinhado com as pautas do governo, ele também é pastor presbiteriano. Durante a sabatina, Mendonça reforçou o estereótipo, prometendo ser “terrivelmente conservador” com as pautas de costumes.
Combinando as declarações com posturas pregressas do novo ministro do STF, como a elaboração de dossiês investigando antifascistas opositores do governo e provocando acusações penais de calúnia e injúria contra críticos do Presidente da República durante sua passagem pelo Ministério da Justiça, há um receio de que Mendonça, como ministro, venha a representar uma postura autoritária, regressista em relação a direitos das minorias e à diversidade, e oposta à separação entre crenças religiosas e Direito objetivada por um Estado laico.
Quem observa atentamente as relações entre os três ramos do Poder constituído não consegue evitar a pergunta: qual será o impacto do neófito da corte na instituição do STF?
Aqui é preciso afastar-se das individualidades por um momento para ver o quadro geral. O plano do STF para o próximo quadriênio é tornar-se cada vez mais próximo de um Tribunal Constitucional, focando sua atuação nas ações de competência originária e reduzindo o espaço da competência recursal em sua pauta. A consequência é uma corte ainda menos acessível às demandas individuais e da população em geral, em troca de um peso maior nas relações institucionais da República. O cenário é de uma corte que busca cada vez mais afirmar seu papel de guardiã da Constituição na vida política das instituições. Em meio a uma conjuntura turbulenta, em que o Executivo frequentemente provoca atritos com os demais ramos, a tarefa tem sido de uma convivência tensa, mas viabilizada pela atuação coordenada dos ministros em nome da sobrevivência e da relevância do Tribunal que compõem.
O acúmulo histórico do STF traz um aporte complexo a sua tradição institucional. Um dos órgãos mais antigos do Estado, o tribunal tem seu nascimento junto com o da própria República. Desde então, passou por incontáveis tensões políticas e crises constitucionais – as ditaduras militares da República da Espada, os recorrentes estados de sítio e intervenções federais da República oligárquica, a Revolução de 1930 e as idas e vindas de autoritarismo na Era Vargas, o golpe militar de 1964 e subsequente ditadura – e se manteve presente como instituição. Por vezes, com enfrentamento às violações constitucionais pelos demais poderes, mas frequentemente com leniência para com arroubos autoritários dos governos da vez.
No tempo curto da conjuntura, destacam-se as personalidades dos ministros – em um “tribunal de solistas” que parecem não dialogar entre si. Na temporalidade longa da estrutura, o STF se mostra um tribunal sobrevivente, capaz de ação institucional coordenada entre seus membros e disposto ao que for necessário para garantir sua continuidade institucional – seja enfrentando a violação à Constituição, como fez pontualmente nas calmarias democráticas, seja curvando-se e chancelando as violações, como fez nas tempestades autoritárias do Estado Novo e da Ditadura civil-militar.
A flexibilidade é virtude-chave do ofício de guardião da Constituição em um país que já teve sete constituições em um intervalo de menos de dois séculos, e que é marcado pela instabilidade de seus regimes tanto democráticos quanto autoritários.
Assim, o que o futuro projeta ao STF para a quadra da história que se aproxima certamente não é o risco ao tribunal em si. As rotinas e hábitos, como em qualquer instituição, se encarregam de formatar os novos ingressantes tanto quanto estes possam formatar as práticas institucionais. A racionalidade dos tribunais não é a razão natural deixada sem limites, mas sim a “razão artificial” – como foi descrita pelo notório juiz da corte suprema britânica Edward Coke – lentamente trabalhada e elaborada pelos rituais e tradições das instituições judiciárias. Com o tempo, os atores se ajustam a expectativas e padrões, e, mesmo que agindo de maneira aparentemente isolada, todos contribuem para a continuidade da instituição.
A questão que fica é até que ponto o sentido da função de Tribunal Constitucional – supostamente, a guarda da Constituição – pode ser preservado, enquanto o órgão vai sendo permeado por concepções avessas à noção de direitos humanos e fundamentais e vai se adaptando e adequando a um ambiente político cada vez mais tenso e autoritário.
O guardião da Constituição pode sobreviver às pressões tanto resistindo quando cedendo, mas a Constituição só estará de fato guardada se a razão artificial resistir e as tendências “terríveis” individuais de toda sorte forem enquadradas e limitadas pelos hábitos institucionais.
Apenas sendo a contraparte do poder é que os tribunais podem sobreviver não só no seu corpo, mas no sentido de seu espírito, enquanto aspiração ao Estado de Direito.
(*) Rodrigo Luz Peixoto é professor substituto junto ao Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFRGS. Doutor em Direito pela UFRGS, também participa do grupo de pesquisa Constitucionalismo na América Latina.